segunda-feira, 20 de março de 2017

A Vida como vem

Ao meu lado a mãe repetia: "Eu disse filho que não ia doer. Você precisa confiar na sua mãe." E o garotinho, que antes berrava durante o exame de vídeo deglutição, assentiu como criança: "É mãe, é que eu pensei que ia doer. Mas você também um dia já foi criança.". Enquanto eu esperava minha vez no exame, escutava aquelas “coisas de mãe e filho”, sentindo a sabedoria da vida na cadeira ao lado.

E lá volto eu para a sala de espera, agora aguardando o laudo do exame, pronta para seguir a tarde de quarta-feira. A vida, no entanto, tinha mais nuances para me mostrar, ainda sobre as delicadezas maternas.

Ela passa nervosa ao lado, preocupada com a mordida de mosquito na perninha do rebento. "Eu fico paranoica, sabe, com essas picadas.", desabafou enquanto já sentava ao meu lado puxando conversa. E bastou uma pergunta para desenlaçar a própria vida.

Já era mãe de um garoto de onze anos quando o ventre pulsou novamente. "Meu filho pedia um irmãozinho, eu e meu marido começamos a querer também. Passamos dois anos tentando e nada, até que uma tarde parei e conversei com Deus. Eu disse: Senhor, manda meu filho. Eu aceito por inteiro, como ele tiver que vir.”.

Eu ouvia admirada aquele relato sincero, de estranha para estranha, de uma mãe para uma mulher que ainda está emaranhada nos novelos da endometriose. A simplicidade do olhar, a calma na fala, revelava a confiança da desconhecida. “Eu sentia que ele viria especial. Algo dentro de mim já avisava, e eu estava pronta para receber.”.  Seriam as tais “coisas de mãe”, que a gente nomeia de várias formas, entre elas a de sexto sentido materno?

A jovem senhora me contou que o pequeno garotinho tinha microcefalia, diagnosticado poucos meses após o nascimento. “Peguei Zika no começo de 2015, com dois meses de grávida, quando ainda nem se falava dessa doença e os médicos não sabiam das complicações para o bebê. Mas durante toda a gravidez eu me blindei de más notícias.”. Explicou que a estratégia, inconsciente ou não, a ajudou a completar a gestação sem intercorrências.

“Hoje ele é nossa vida e uniu mais ainda nossa família. Meu marido é alucinado por ele.”, contou enquanto cheirava o filho amorosamente. O garotinho de um ano ainda não conseguia andar, com as pernas rígidas, olhava fixamente para a luminária no teto. “Percebi que eu não tenho controle sobre nada. E o tempo certo é o tempo de Deus.”, concluiu.

Aquelas mães me trouxeram falas sobre confiança e entrega, me fizeram questionar que parte de nós, ao sonhar, ao desejar, se rende de fato a tudo que vem e como vem. Estamos preparados para esse voto de confiança e rendição? Estamos abertos para abarcar o todo que envolve nosso desejo?

Por vezes, enquanto a gente faz planos sobre a vida, o controle remoto parece estar sem pilha. A gente tenta mudar o canal, decidir o que assistir, aperta, clica, se irrita, mas nada acontece no tempo que esperamos. É como se existisse uma programação independente, a nossa revelia. Para aquele dia, tinha me preparado para um exame e duas visitas à família. Não imaginava que receberia bem mais de uma tarde na clínica.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas.

O lugar da velhice

Ela já não caminha tão confiante, repete as perguntas, esquece as respostas, troca os nomes e fala palavrões com mais facilidade. A jovem senhora bagunça a rotina, rebelde não aceita remédios, tampouco as fraldas para as incontinências; teima em desobedecer regras que a família tenta impor, logo ela que sempre foi dona da própria vida.

A descrição pode ser de um parente próximo, ou daquele vizinho que vimos escorrer os anos, talvez um conhecido de outra geração que vai se aproximando do primeiro lugar na fila. Eu conto nos dedos uma porção e acredito que você também. Eles ocupam nossos espaços em um amanhã, nesta “previsível” dança do destino.

Uns sofrem mais com o afastamento dos entes, outros se perdem entre a solidão das casas de repouso, ou vivem sob a lembrança de um parente tão imaginário quanto real em seu sentir. Balbuciam coisas em sua tenra inocência, de volta ao casulo que lhes é peculiar nesta temporada. Alguns resistem com mais lucidez, persistindo nesse disparate chamado velhice.

Tomando café em uma tarde da semana e conversando sobre questões de família, ouvi uma frase que vem me acompanhando estes dias: a velhice é uma espécie de loucura. A sentença ficou martelando na cabeça e me fez pensar sobre o lugar da velhice em nossas vidas, se é difícil para nós aceitar esta etapa, ou se nos cabe um peso imenso pela recusa.

Certa tarde, por coincidência (tal o sincronismo da vida), li um emocionante texto da jornalista Eliane Brum, no qual relatava a perda de seu pai amado e o quão doloroso foi o processo no hospital, sem poder se despedir dignamente ou acompanhar a passagem paterna. Eliane disse que "ao entrar num hospital para morrer, deixamos de pertencer a nós mesmos" e lembrou que "o fim de uma vida é ainda vida - e não morte".

Como se não bastassem os descaminhos da velhice, ainda enfrentamos vários tropeços neste fim, que ainda é vida, como diria Eliane. Uma fase que vem mesmo nos desafiar, misturar os planos e desfazer nossas certezas. Do lado de cá, enquanto não velhos (somente por hoje), assistimos o apagar da chama; do lado de lá, enquanto protagonistas no palco, eles se veem a mercê da interferência alheia, sentindo o corpo murchar, perdendo a autoria da vida. Lembro-me da minha Vó lamentando a aparência da mão, tão cheia de manchas e enrugada, era como se a mão não fosse dela. Não reconhecia o próprio corpo.

É de dar nos nervos ver a vida assim, solta, sem controle. Os fios em curto circuito e a gente querendo remendar o que não tem conserto, o corpo vai envelhecer. Como ouviria naquela tarde de café, cedo ou tarde vamos entrar nesta espécie de loucura. Mas como atravessar tudo isso com dignidade, quando não raro perdemos a compostura e a paciência? Recordo o que eu repetia para mim, enquanto via minha Vó definhar, apesar dos meus cuidados – “é preciso amor, muito amor”!

Ano passado assisti a um tocante documentário, “Alive Inside”, que abordava a temática. A película mostrava o poder da música como recurso para resgatar a identidade dos idosos, principalmente daqueles que sofrem com a ausência advinda do Alzheimer. Foi intenso ver a conexão com aquelas pessoas, antes tão absortas em seu mundo, tornarem-se vivas após simples acordes da juventude. O vigor aflorava quando a música visitava os lugares esquecidos. Afinal, "o fim de uma vida é ainda vida - e não morte”.

No filme, um dos cientistas questiona quem somos nós sem a nossa memória e qual o lugar da velhice no mundo atual. De acordo com ele, os idosos são vistos como uma parte quebrada, após o auge de uma vida adulta, sendo fundamental encontrar de novo o lugar deles no mundo.

O tal cientista apontava ainda para a indústria da velhice e o dinheiro envolvido nesse mercado - lares de idosos, remédios, hospitais, planos de saúde – lembrando-nos do objetivo predominante desses recursos - esconder nossos idosos. De fato, não é prático envelhecer, principalmente quando se tem a saúde tão fragilizada. Não dá para tomar cápsulas milagrosas e fazer o espanto passar. “Ontem ela era tão forte e hoje está acamada...” Ouvimos essas lástimas frequentes.

Para atravessar essa “loucura” muitos varrem os tormentos para baixo do tapete. Mas a vida sempre cobra seu preço e a morte também. Quando o corpo se vai ficam os remorsos do que poderia ter sido e logo será nossa vez na fila. Nos tornaremos protagonistas para qual plateia? É, o corpo pode ir, sempre vai, mas o que fica é humanidade, sem contraindicação, a qualquer tempo, sem prazo de validade.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas.