sábado, 20 de maio de 2017

Indo além da dualidade



Nascemos da unidade - o amor - e caímos na dualidade na nossa primeira grande mudança – o nascimento. O embate entre vida e morte assim que viemos ao mundo cria nossa primeira cisão, o momento decisivo pela vida. O sentimento de completude que vivíamos no útero não mais se reproduz. Lá dentro tudo era protegido, seguro, estávamos numa redoma, apesar de já captarmos o ambiente ao redor. Na vida, buscamos repetir essa perfeição.

Aqui fora, encontramos um mundo polarizado. Nossas percepções, principalmente com a crise que atravessamos, têm nos levado à dualidade. Hoje é tudo ou nada, bom ou ruim, certo ou errado, verdade ou mentira, culpado ou inocente, mocinho ou bandido. Temos nos distanciado do caminho do meio e da perspectiva de que estamos todos juntos no mesmo barco.

Os julgamentos vão fazendo parte inerente da nossa rotina, acompanhados de sensações de perda ou ganho. No automático classificamos situações, pessoas e objetos com rótulos definitivos que nos aproximam ou afastam. Aqui fora a visão parece estar turva, nossa temperança também.

Os ânimos aflorados nos levam a condenações sumárias e separações. Como ascender em meio a tantas decepções? Como nos acalmar por dentro se por fora está um caos? Como ir além da dualidade?

Essa semana, ouvi uma palestra com o jornalista André Trigueiro, na qual ele falava sobre transição planetária, momento que a Terra e nós humanos estamos atravessando para separar o joio do trigo nesta crise ética, moral e de relacionamentos. Uma crise sistêmica, global. Segundo ele, é como se tomássemos um vermífugo forte, amargo, mas que vai nos curar. Trigueiro destaca que durante essa transição é preciso persistir no caminho do bem, renovar todos os dias a nossa fé, selecionando o que vemos, ouvimos, comemos, e também as pessoas com quem queremos estar.

Talvez não estejamos mais aqui para ver a solução, diz o jornalista, pode demorar muito, embora já esteja acontecendo. Mas vale fazer a parte que nos cabe no tempo que dispomos na terra. “A vida é movimento, ação incessante o tempo todo. A hora é de assumir quem você é no tabuleiro e verificar se onde você está está bom. Se não, ainda dá tempo de movimentar sua peça no jogo.”, adverte.

As palavras de Trigueiro me levaram até minha Avó materna, base da minha educação. Ela me ensinou, na sua simplicidade e olhar firme, lições básicas que me acompanham ao longo das escolhas diárias. Conselhos nem sempre verbalizados, mas observados por mim como algo natural do ser humano. “O que não for seu, devolva”; “o que dever, pague”, “respeite os mais velhos”, “não dê cabimento a fofoca”, “isso não está certo minha filha”, “fale a verdade”, “não importa o que o outro fez, eu quero saber é de você, diga”.

Sabedoria de Vó parece milagre, acalma o coração dividido. Traz aquele sentimento de estar dentro do útero, protegida por mãos idosas e justas. Quando criança, se eu pensava em dar um jeitinho em alguma situação, vinha logo a voz na minha cabeça alertando - “minha Vó disse para não fazer isso”; “minha Vó disse que isso era errado”. Deve ser coisa de criança, mas ainda tenho esses pensamentos quando vejo os noticiários, quando observo o trânsito, quando quero dar desculpas para me enganar.

Às vezes eu penso que essa bagunça toda aqui fora do útero não tem mais jeito, é perda, traição, fim. Mas escuto André Trigueiro e ganho esperança. É perdão e recomeço. Oscilo mais um pouco vendo as notícias em todos os veículos falando sobre mentira, propina e um monte de palavrão. É tristeza e nervosismo.

Os movimentos pendulares cansam. Parece que estamos sempre arrumando uma bagunça, lembrando-se do básico da vida - ser inteiro e amoroso.

Volto à infância, para a rede embalada pela Vó. O coração tranquiliza, me vejo amassando seu cotovelo (mania de criança), alisando o braço dela geladinho e a escuto dizer “tenha paciência minha filha”.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas. 


sexta-feira, 12 de maio de 2017

Fotografias

Fui procurar umas fotos da infância para homenagem ao Dia das Mães e encontro várias fases da vida estampada em cor. Percebo que só tenho um álbum de criança com uma fotinha do batizado com meus avós, três de um aniversário no qual adorava a mesa decorada com guloseimas e duas de meus pais juntos me segurando no colo (raridade para se guardar no cofre). Mais umas quatro de quando bebê, as quais estranhamente parecem não ser eu.

Fotografias são as memórias do peito guardadas no papel. Quando a gente se vê refletido é um disparate. Voltam no tempo os sentimentos da época, nosso modelito desatualizado, o corte de cabelo rebelde, os programas com amigos, algumas dores e amores. Volta a fita dos problemas tão grandes vividos ali (com a nossa dimensão juvenil) e as inúmeras preocupações de uma vida adolescente.

Fico curiosa para saber quais os pensamentos naquele exato momento da foto. O que sentiam todos os registrados, o que tentavam conquistar e o que esperavam da vida. Como um corte no tempo, a gente vira mosca e relembra as cenas, imagina os porquês e se perde em devaneios.

Além da nostalgia das fotos antigas, em geral se tem a ideia de que estamos melhores, mais maduros, mais bonitos, mais vividos. Dá certo conforto sentir que a vida anda para frente, mesmo nos momentos em que teimamos usar a marcha a ré. Evoluímos todos, somente a estátua é que se deteriora.  E não temos essa vocação, porque nascemos do movimento e seguimos assim, embora os ponteiros às vezes pareçam enferrujar.

As fotos de antigamente trazem o ineditismo, outros ângulos, espontaneidade e sorriso mais livre de quando só tínhamos direito a algumas poses. Registravam as emoções, mais do que pessoas olhando para a câmera. Não era preciso perfeição nem o melhor perfil. O sentimento estava nos dois lados.

Eram momentos genuínos da festa de criança, com lembrancinhas nos copos plásticos que viravam coelhos, cestinhas e o que mais a habilidade da nossa mãe permitisse. Era uma mão não se sabe de quem cortando a foto. E seres desconhecidos. “Sabe quem é esse aqui? Não, e você? Também não. Deve ser fulano. Não, é sicrano. Ah sim, é o filho da comadre Chica!”

Na foto, aquela mãe também não é a mesma de hoje. O sorriso e olhar ingênuos completavam a calça boca de sino, os móveis dos anos 1970 e o calendário na parede. Os sonhos de ontem são tão diferentes dos de hoje. Assim também a criança de vestidinho bordado, casinha de abelha, agora em outras vestes.

Do álbum de infância para 2017 correu um rio, vazou um mar. Hoje são outros doces, novas alegrias e mais desafios. A mãe foi, a Vó também. A mãe voltou, como nos laços de presentes que refazemos par ficar mais enfeitado. Essa história de olhar álbuns dá nisso, a gente se revisita e se reinventa.



sexta-feira, 5 de maio de 2017

Uma Fala Carpinejar


Uma noite refrescante. Ouvir o escritor gaúcho, Fabricio Carpinejar, conversar sobre como ser “feliz por pouco e transbordando por muito, como ser feliz criativamente”, nos lembra do tempo para o afeto, do abraço sentido, do contato honesto com o outro.

Carpinejar, que uniu os sobrenomes da mãe (Carpi) e do pai (Nejar) para se fazer inteiro, para aproximar os pais em seu imaginário afetivo, diz que só foi ser poeta para buscar o pai. “A poesia é uma longa carta que eu escrevi para ele”.

Ele bem alerta, “a gente só se resolve quando fica em paz com os pais”. O escritor das palavras descreve os impasses do coração e adverte que o grande problema da felicidade é que a gente sempre acha que o outro pode ser melhor do que ele realmente é. “A gente cobra do outro uma perfeição”, quando nós mesmos estamos longe disso.

A felicidade passa, portanto, pela paz com o passado, com nossas raízes, nossa história. Se olharmos bem, dá até para perceber pedacinhos de nós fincados no corpo dos sete anos, no muro da nossa casa da adolescência, nas conversas das madrugadas com amigos, nas memórias com o “ex”. Ficamos por lá?

Para ser feliz criativamente, anuncia o poeta, é preciso sair de si, do egocentrismo e observar o outro. Alimentar a curiosidade e se reinventar a cada dia em novas linguagens.

Em tempos virtuais, Carpinejar contesta a criatividade desperdiçada ao se odiar tanto o outro, “criamos todo tipo de insulto, mas no elogiar somos reticentes. Para destruir alguém usamos todas nossas reservas ideológicas”. Porém, nossa real dificuldade está em encarar os próprios defeitos, na tentativa de esconder nosso monstro interior.

“O quanto nós fazemos no dia somente para provocar?”, questiona. E o pensamento vaga por aquelas pequenas discordâncias diárias, que nem sempre deixamos passar pela irresistível vontade de ter razão, em tudo. Mas a felicidade não mora na razão. E sabiamente o poeta recorda, “com o tempo eu percebi o que é ter razão se tu pode ter amor.”

O homem que escreve para destruir janelas, de fala emotiva, ora aos gritos, ora baixinho, comove. Sensibiliza pelas frases simples, qual conselho de amigos, mas firmes como os relâmpagos rasgando o céu. Ele nos convida a falar com o coração, pois sinceridade não é reproduzir o que vem à cabeça, mas conciliar os dois tempos – o da fala e o do coração – porque o outro pode não estar preparado para ouvir o que você tem a dizer.

A fala Carpinejar nos leva a parar, a sentir, a recuperar a felicidade pelas coisas simples, a não dar nada por garantido, mas a aproveitar o tempo presente para dizer o quanto amamos. “Porque o mais difícil na vida não é se reinventar, é se assumir.”


Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas. 

Eu te Abraço


Amiga-irmã, hoje sou eu quem seguro a tua mão, na mudança de papeis que a vida nos encoraja a experimentar, sem ensaios. Lembro-me de quando, há dez anos, você fazia o mesmo por mim, enquanto eu me despedaçava por dentro ao ver minha amada Vó partindo. Hoje é você quem se despede do seu amado Pai, hoje nos tornamos mais cúmplices. Eu te sinto e te entendo. Eu te abraço como as almas que se aproximam sem nada dizer.

Fico emocionada ao saber que, assim como eu, embora para poucos, você tenha tido a oportunidade de estar ao lado dele, segurando a mão nos suspiros finais, na "hora sagrada" como você mesma nomeou, que é o momento da travessia. Você pode sentir o silêncio, o tempo parar, enquanto os anjos diziam amém e levavam seu Pai nos braços encantados da luz.

É revelador e há uma beleza na hora derradeira. Para quem tem a oportunidade de vivenciar essa passagem, ficará para sempre como um momento mágico, apesar de toda dor, mesmo com tanta saudade. Haverá gratidão pelo tempo dado, pelo tempo vivido, pelo que pode ser. Todos deveriam ter esse direito, ter a benção de viver o instante final ao lado dos queridos, de poder dizer com tanto amor: "siga em paz".

Com a partida do seu Pai, revivi os meus adeus, os concretos e os imaginários, e pude perceber os adeus simbólicos nos olhos dos outros, refletindo as próprias despedidas, muitas ainda não realizadas. A sua dor nos perpassa e nos soma à dor global da separação, que nos torna tão humanos, tão finitos em corpo de gente.

Caminhando ao seu lado, abraçando seu corpo tão fragilizado naquele momento ritualístico, sinto sua emoção e me torno una com seu movimento, torcendo para que você atravesse sem tanto pesar. Queria poder tirar alguma carga dos seus ombros. Queria, tentei.

Fico angustiada pela hora do “baixar o caixão”, aquela etapa em que nosso corpo vacila com o derradeiro adeus à materialidade. Depois, só lembranças. Boas lembranças, decerto. Porque o amor suplanta as tribulações dos momentos finais e parece resumir os desafios naquele grande sentimento inenarrável que liga as almas em essência. O Amor.

Nas últimas flores brancas jogadas, pude notar como caíam sobre o homem que cobria de cimento o espaço retangular. Uma chuva de pétalas, de votos lançados por sobre o outro, que ali estava junto ao teu, para guardar, para eternizar. Não sei quantas flores o homem de verde recebeu naquele dia. Sei que aquelas das 14h30 tinham o orvalho do dever cumprido, do "jamais retroceda", do "seja bem sucedida", como seu amado costumava profetizar.

Voltar para casa é duro, eu sei. Encarar o vazio das horas miúdas, do quarto que exala um cheiro de saudade. Não há atalho para atravessar este mar. Queria te levar comigo para passear, para ver a vida que chama lá fora, agora que é livre para novas escolhas.

A coruja pintada em teu corpo deve te guiar nessa jornada de aventuras, que com certeza te espera nesse recomeço. Que as borboletas soprem no teu estômago, lembrando de que sempre é tempo de "sol-te", como está escrito em teu braço. Solte o que já não te serve mais e sejas feliz!

Que o dente de leão sopre tua sorte para campos infinitos de descobertas gentis, aquelas possíveis nas almas de criança. Eu te abraço e digo que estou aqui, porque é isso que os amigos fazem. A cada crescer de asas, permanecem.

Texto originalmente escrito para o blog da professora Dalu Menezes.