segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Procure sua turma


“Vá procurar sua turma”, se antes era um desaforo, virou um bom conselho nos dias atuais. Quem nunca esteve em um grupo no qual os trabalhos pararam de progredir? Ou entre pessoas com as quais não mais se identifica?

Falar a mesma língua, ter sintonia de pensamento, sentir o propósito alinhado é o que buscam cada vez mais as pessoas que querem ter prosperidade na vida. Mas acima de tudo, é o que buscam aqueles que querem sentido para o que fazem, seja no lado profissional ou no pessoal.

“Procurar a sua turma” faz com que as sincronicidades aconteçam. De repente, começam a chegar sinais de que estamos no caminho certo. Caem no colo informações conectadas com novos projetos e, como mágica, tudo ao redor parece avançar na incrível coincidência.

Quando estamos “enturmados”, deixamos de fazer aquele esforço enorme (às vezes imperceptível) para transmitir ideias e nos fazer entender. A comunicação ocorre mais fácil, fluida e complementar. Parece até telepatia. Sabe quando alguém ia dizer justamente o que você estava pensando? Fulano completa a frase que você começou... Sicrano fala de um assunto que você tinha lido horas antes...

As peças de um grande quebra cabeça parecem se juntar com rapidez e a gente acha tudo insano, fica abismado. O todo vai ganhando corpo até melhor do que o imaginado, e constatamos: Uau! Aonde isso vai levar?! Dá medo? Talvez. Mas, essencialmente, admiração.

A questão é que “procurar a sua turma”, às vezes, leva a desapegos de uma outra turma que, até dia desses, fazia o maior sentido para nós. Só que hoje não faz mais e isso traz insegurança. Pode despertar tristeza e até um sentimento de culpa. Poxa, éramos tão unidos! Funcionava tão bem! Só que quando a gente se depara em um novo lugar que conecta mais forte, a sensação de incompreensão desaparece.

Se nos permitirmos abrir esta nova porta, pode ser surpreendente. O remar contra a maré vai virando coisa do passado e toda a energia agora parece canalizada de forma mais proveitosa. Ufa, um alívio! É quando percebemos os dias a pleno vapor. Renovam-se o fôlego e a vontade de desbravar o novo, mesmo que pareça assustador.

No entanto, agora não estamos sós, mas acompanhados da nova turma, essa outra que se juntou sem planos aparentes. Antes parecia que não estávamos sozinhos. Apenas parecia. Com o esvaziamento do propósito, a turma passada já foi pulando do barco sem a gente perceber. Ou até nós mesmos podemos ter entregue os pontos antes do fim, sem nos dar conta. Não há culpados. Há transparência e confiança, e quando é menos do que isso, não vale mais a pena. A gente estava à deriva e não sabia. Só sentíamos aquele tremendo esforço para realizar qualquer mínima ação, com resultados frustrantes.

Bom seria se, chegada a hora da mudança, surgisse um aviso nos alertando para outra direção. Mas não funciona assim. Em geral, a gente pena e insiste um bocado em conservar o conhecido, em vez de dar adeus e agradecer o que passou.

Penso que na vida, de tempos em tempos, ajustamos o rumo do barco. É quando a tripulação dá uma boa variada e a turma muda. A gente parte para uma nova viagem, sem rota definida, confiando que os ventos sopram na direção que o novo grupo se engajou.

A cada parada pode ser que suba mais alguém. Aqui e ali aparecem mais talentos. Avistamos uma terra distante, às vezes miragem. Pode ser também que não haja mais terra, e agora? A gente também não sabe. Há que se ir aprumando a embarcação. O porto final permanece uma incógnita, mas a turma está lá para descobrirmos juntos.


Enquanto isso, a gente iça as velas, gira o leme e muda de capitão sempre que alguém apontar o caminho com mais lucidez. Nesse novo barco não há mapas, os caminhos são desenhados em colaboração. Mas existe sim uma turma cheia de entusiasmo para navegar em uma vida com mais propósito.

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas .

domingo, 5 de novembro de 2017

Entre sonhos e humanidades


Acho tão bonito isso de ter sonho. Dá uma coragem danada de viver mais e arriscar. Enche a alma de possibilidades. Sai uma força gigantesca de dentro do peito gritando que a gente pode e merece ser feliz. Sonho é magia.

Gosto de pensar nos sonhos que alimentamos, que um belo dia viram presente quando antes só eram possíveis no coração. Digo isso, porque costumo, de forma inconsciente, naturalizar as vitórias como algo simples, sem esforço, “mais do que a obrigação”. Sintoma de pessoa autoexigente. Para me tratar, tenho procurado internalizar o percurso das conquistas, o tempo maturado, a energia desprendida e as ações. As pequenas, as grandes, as improváveis, as banais.

Comecei, então, a registar sonhos e conquistas em um "caderninho de vitórias", como apelidam por aí. Percebi que se anotamos as superações diárias vira uma lista de ruma. Pode ser algo diferente que ousamos certo dia, coisas simples como falar com estranhos, chegar a um lugar desacompanhado, ir ao cinema sozinho ou fazer o que estava na lista de “para quando tiver tempo”. Atos bobos para uns e um passo enorme para alguém. Desejos tão pessoais e legítimos.

Vejo que esse processo acaba por assinalar também nossa trajetória. Abraça os altos e baixos como natural da caminhada. Mostra que aquele dia “não tão bom” não se torna uma mancha na fotografia. Compilar as vitórias, ajuda a lembrar que, se hoje estamos aqui, foi porque antes estivemos mais atrás, e antes de nós outras pessoas, e outras gerações, numa longa cadeia de sonhos, acertos, atropelos. E é tudo tão incrível, porque só o fato de resistirmos, sonharmos, é fantástico. Olhar nossa história com generosidade e acolhimento é energizante.

Outro dia conversei com uma pessoa que me falou muito sobre o quanto cada pessoa tem um percurso particular, desenvolvendo uma percepção distinta sobre a vida. E sobre como viver é relacionar-se o tempo todo. Daí a importância de ser gente, de cultivar a humanidade.

Após quase uma hora de conversa, saí embevecida. O corpo adormecido, enquanto a cabeça processava as reflexões. É sempre interessante ouvir os próprios valores pelo discurso do outro. É um tônico. E prontamente me ocorreu um insight sobre momentos de dúvida, seja na vida pessoal ou profissional. Veio o entendimento de sempre optar pela humanidade, porque no fundo é a nossa razão de existir. 

Naquela tarde, eu estava cheia de trabalho, prazos a cumprir e uma amiga recém-operada por visitar. Eu já tinha concluído que não haveria tempo para ir ao hospital, nem espaço para comportar todos os objetivos do dia. Depois da conversa, no entanto, fiquei sentindo a melhor decisão. Lembrei-me sobre ser gente e optei pela humanidade de abrir o tempo com a mão. Fui ver a amiga.

Já em casa, à noite, “optar pela humanidade” foi para meu “caderninho de vitórias”. Mais uma conquista a celebrar, junto com os sonhos, os pequenos êxitos e as coisas sensíveis. Comemorei a vitória em ser gente, por mais um dia.

O caderninho tem mais inúmeras páginas em branco para anotar, quantas vezes necessárias, essa opção pela humanidade. Uma conquista que não reclama de repetição.

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Vida é colaboração


Um assunto tem me ocupado a cabeça e o coração na última semana – a valorização do trabalho das pessoas. Vivemos em conexão e alguns seres ainda não despertaram para esse fato. Reconhecer a contribuição do outro faz parte da vida em grupo, que ainda é experimentada dia a dia, entre conhecidos e desconhecidos.

Em um mundo cada vez mais colaborativo, legitimar o trabalho do próximo é condição essencial para avançar. Não, não estamos sós, não realizamos as atividades sozinhos, não construímos o resultado fechado na nossa super cápsula protetora. A vida em rede é muito mais do que a nossa imagem no espelho. É interdependência.

Desconsiderar a história das outras pessoas ou menosprezar o resultado construído no coletivo pode ser uma falha de caráter. Talvez haja conserto no futuro próximo, mas, por hora, todas as vezes que não validamos o esforço de alguém, deixamos o mundo mais pobre.

Não, não somos uma ilha onde tudo gira ao nosso redor. Assim como também não é sábio viver querendo tirar vantagem a qualquer custo – das coisas, situações e pessoas. O dicionário diz ser vantagem a “qualidade do que está adiante ou superior = SUPERIORIDADE”. O significado pode estar certo no mundo alheio, mas não no meu. Não quero essa visão que tira proveito sem que o próximo também se beneficie. Dicionário, eu e você estamos em dissonância.

Eu me pergunto o que nos leva a crer que podemos dar conta de todos os espaços, como um organismo autossuficiente, pensando (penando?) sermos onipresente e onipotente. Deve ser nosso complexo recalcado de Deus. Deve ser a carência por importância.

Que possamos nos unir mais em propósito, afinidades e talentos. O seu brilho não afeta o meu, e sim me inspira a ir além, a encontrar a porção de mim que também reluz. Juntando os dons, o mundo fica mais rico e criativo. Vira exponencial, termo que os futuristas têm me a ajudado a descobrir. É na dinâmica da colaboração que alcançamos crescimento muito mais amplo do que o esperado, talvez do sequer imaginado. Sabe quando a sincronia vai chegando na sua timeline? É o fluxo da conexão a pleno vapor.

E tudo isso passa pela confiança. Palavra com um sentido gigante e precioso. Passaporte para os atravessamentos, para as pontes que cruzamos por diferentes motivos e circunstâncias, principalmente nos momentos de transição. Confiança em mim, em você, no outro, na parceria, horando os acordos diários que vamos estabelecendo na vida. Respeitando o caminhar digno, que nem sempre é o mais fácil.

A ideia é que não economizemos elogios e aplausos nessa vida. Que possamos usar a diversidade do verbo colaborar a cada oportunidade. Ganhamos todos ao ajudar, contribuir, apoiar, auxiliar, assessorar, assistir, secundar, favorecer, cooperar, participar, coadjuvar, associar-se, envolver-se, atuar, compor, criar.

Que o seu melhor se junte ao meu, o meu ao seu e que, juntos, ofereçamos o melhor de nós ao mundo, sem moderação.

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.

Ocupando nosso lugar


“No meu lugar tenho força e a vida faz sentido”. Ouvi essa frase de uma conhecida do mundo holístico, quando falava sobre a caminhada espiritual. Lembrei-me das vezes em que senti a força interna brotando e as cores ao redor mais vibrantes. Eram momentos em que me percebia plena, realizando algo com sentido para mim. Devia estar com os pés no meu lugar, do qual falou a colega.

“Uma pessoa que encontrou seu lugar, ajuda outras que ainda estão tentando se encaixar a encontrarem. Dá segurança…”, explica o escritor Gustavo Tanaka. Devem ser justamente aquelas pessoas que nos inspiram com suas histórias, palavras, exemplos. Sabe quando há um brilho ao redor quando falam? Uma aura quase palpável? Elas aparecem e nosso cabelo do braço arrepia, dentro do peito cada palavra ressoa. As horas param enquanto o tal ser encaixado reluz como um norte em tempos sombrios.

“Se você não se sente realmente encaixado no seu lugar, você vai ser tomado pela inveja, vai querer o lugar do outro, vai sentir ciúmes e vai criar muitas guerras”, alerta o mestre espiritual Prem Baba. Mas afinal, que lugar é esse? Sobre o que estão falando ilustres e anônimos? Falam do espaço que é só nosso e ficará vazio até o ocuparmos. Avisam sobre aquele lugar que mais parece o sapato da Cinderela, feito sob medida para cada um de nós. E que, enquanto não habitado, o todo fica menor sem nossa participação genuína.

Penso que, para ocupar esse lugar, não podemos ir apenas com a roupa do corpo. Há que se levar a bagagem junto, com lenços e documentos, porque cada item guarda uma história a contar. Não surgimos do nada. Nossas cicatrizes revelam as batalhas pessoais, aqueles momentos em que pensamos que não íamos conseguir, nossos enganos. Doeu. Às vezes doeu muito. Há vezes em que procuramos esquecer. Mas vejo que, tão mais fundo enterramos essas feridas, tão mais longe estamos do nosso ser total, do nosso lugar.

Os mestres espirituais nos aconselham bravura. Dizem para abrirmos o peito e acolher nossa história, com tudo o que tem lá dentro. Um emaranhado de batalha e pó. Uma vida em alquimia, que está sempre evoluindo, embora não acreditemos. São enfáticos ao recomendar que não reneguemos o passado, mas honremos o ser que nos tornamos. Afinal, eu e você sabemos que houve um longo caminho para chegar até aqui. Nem sempre foi fácil.
Primeiro sobrevivemos aos nossos pais, e seguimos sobrevivendo aos outros e aos nossos próprios fantasmas. Porém, resgatar a força dessas lembranças, mesmo as doídas, faz nosso poder crescer. É o que sinto, é o que me dizem, é o que reparo.

O convite da amiga espiritual, de Gustavo Tanaka e do Prem Baba é o mesmo que eu me faço todos os dias. Como ajustar o binóculo para ver a abundância (onde imaginamos escassez)? Como ressignificar o peso das histórias, trazendo a sabedoria dos aprendizados?

É chegada a hora de sair da sobrevivência e ir além, porque queremos, porque merecemos mais. Sabe aquela bagagem recheada de histórias? Olhemos novamente. Entre calças e sapatos podem estar escondidas outras peças ali. São os talentos, os dons, as potencialidades. As vestes para uso sem moderação, que serão usadas no dia da posse. O dia de festa em que ocuparemos nosso verdadeiro lugar no mundo.

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.

Memórias à mesa

Recentemente li o livro “Escola dos Sabores”, de Erica Bauermeister. Ganhei de aniversário há pelo menos três anos. Estava ali, perdido na prateleira. Resgatei o presente sem pretensão, mas a história foi me inundando de lembranças.

A obra conta a trajetória de oito alunos que iniciam um curso de culinária no restaurante da protagonista Lilian. Uma mulher que, ainda criança, aprendeu a cozinhar como forma de resgatar a mãe depressiva devido à separação do marido. O amor pela culinária fez Lilian descobrir mais. A chef percebeu que a comida pode curar o emocional das pessoas. Para mim, a leitura acabou se transformando em um enredo cativante e um percurso pelos meus afetos.

Cada capítulo vai desvendando os caminhos dos personagens e trazendo receitas e memórias. É bem aí que a gente se flagra nas próprias recordações, aquelas que passam pelo estômago e impregnam o coração.

Fui levada aos períodos da infância, quando comi pela primeira vez pudim. Minha mãe abre a geladeira e diz “prova aqui”, oferecendo uma colher com um pedaço da iguaria. A memória vem doce, com um misto de estranheza infantil pela textura mole que derretia gelada na boca.

Sigo então para os bolos de Coca-Cola, receita que aprendi vendo minha mãe batendo a massa na forma que era da minha bisavó. Uma travessa azul de cerâmica bem pesada, com o fundo gasto pelas colheres de madeira. A mão girando ao misturar ovos, manteiga, farinha, sem saber ainda o que era uma batedeira. Cresci com bolo batidos à mão. Primeiro minha avó com seu Luís Felipe (o preferido dela), depois minha mãe e sua massa de Coca-Cola e, por fim, eu e os adorados bolos de chocolate.

Da infância lembro principalmente das receitas doces, do pavê com biscoito champanhe, do doce de mamão (inigualável) da Avó, do sorvete de abacate… E também dos períodos festivos.

No livro, os alunos aprendem a saborear o significado do Dia de Ação de Graças, cozinhando lentamente os pratos. Lá em casa, recordo os inúmeros natais, nos quais a ceia da meia noite era preparada durante todo o dia 24 de dezembro. O peru, que gastava quase um botijão de gás esperando o termômetro pular para fora ao indicar o fim do cozimento; a farofa temperada com os miúdos da ave; o arroz branco soltinho decorado com passas e ervilha; a salada de batatas, cenoura, azeitona e maionese. E a sobremesa? Parecia obra de arte! Um mosaico de gelatinas multicores, cortadas em pequenos cubinhos e misturadas com leite condensado. Coisa de artista, coisa de minha mãe.

Seguindo na leitura, surge uma memória especial. A feitura do café da tarde! Uma cena que ainda parece poesia para mim, na minha casa e nos lares que visito. Todo santo dia, no meio de tarde, vejo minha avó encostada na pia, a fumaça subindo enquanto coava o café no pano. O cheiro inundando a cozinha, a casa, a alma. É de uma beleza singela que só os amantes do café conseguem dimensionar. É atemporal.

Olhando assim, nossa vida passa mesmo pelas memórias do estômago, essa escola de sabores e afetos. Cresci com minha avó colocando a mesa para comermos juntas, mesmo que só eu e ela, às vezes nós duas e meu primo, outras com alguma visita. Considero ainda mágico o ato de pôr a mesa, dedicando tempo para uma refeição conjunta. Um hábito que tem escasseado. Uma pena…

O tempo moderno deixou as refeições mais rápidas, automáticas e, muitas vezes, solitárias. Comemos resolvendo problemas, engolimos enquanto trabalhamos, damos uma garfada de olho no relógio. Nem lembramos mais do cardápio, das histórias que vêm junto com a preparação dos pratos. Se antes colecionávamos histórias, hoje nos falta memórias à mesa.

Por isso, defendo que, pelo menos uma vez ao mês, tenhamos aquele tempinho para uma mesa posta, para conversa jogada fora e talheres dispostos sem pressa. Uma mesa de café, almoço, ou ainda um simples jantar com sopa. Ah, sopa! Outra boa recordação…

É na mesa que mastigamos as histórias que cabem no peito, dividimos nossas memórias e bebemos o sumo de uma vida simples e preciosa.

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.

Parece pesadelo

Em tempos de violências simbólicas e reais, e outras inúmeras com siglas infinitas, sobretudo em relação às mulheres, cada iniciativa pode se tornar um ato de rompimento com essa loucura da vida real. Escrever é necessário.

Na última semana, povoou os noticiários o caso do auxiliar de serviços gerais com 17 passagens pela polícia por violência contra mulheres em São Paulo. O episódio tem gerado manifestações as mais diversas nas redes sociais.

Questionam a posição do juiz, que liberou o acusado da ocorrência anterior por acreditar que “não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça”. Solto, o homem cometeu nova agressão. Segue preso, assim como presas estão as dores das das mulheres. Comentários masculinos nas postagens das notícias sobre o caso acaloram as discussões. Mulheres protestam sobre a falta de respeito e segurança. Ninguém se entende e a penúltima vítima se pergunta: “mas meu corto é o que?”.

Tem faltado empatia entre nós, seres. Tem faltado muita coisa.

Quantas violências são necessárias para legitimar a dor de quem sofre? Seja daquele que passou por agressão, seja daquele que se dói por dentro, mesmo “sem” os motivos aparentes por fora. Quantas mortes precisam ocorrer para entendermos a selvageria para a qual estamos caminhando? Quantos mais de nós, nossos conhecidos, nossos desconhecidos, precisam ser violados para nos indignarmos? Quanto mais corrupção precisa existir para usurpar o resto de esperança que escapa? Morremos um pouco a cada dia pela violência que nos chega, porque ela sempre nos alcança.

Dá vontade, às vezes, de resetar o mundo, o jogo, nós bonecos. Por que é cansativo valer-se da dose diária de fôlego para chegar ao fim do dia em pé. É exaustivo usar as inúmeras vidas acumuladas para resistir, como nas lutas dos joguetes virtuais onde se ganha pontos por eliminar os outros.

É fatigante explicar que em nosso corpo não há direito de terceiros – SIMPLESMENTE NÃO HÁ – que o outro não pode tirar a vida de alguém – NÃO, NÃO PODE – que a dor pede escuta – ME OUVE – que a miséria exaspera e não é uma condição humana – NUNCA SERÁ.

Nessa matriz congestionada de violência, parecemos seres de ficção, acoplados a tubos de oxigênio invocados a cada falta de ar, nas cenas absurdas de involução humana. Parece que o pouco que fazemos não é mais o suficiente e que são precisos os tais super heróis para resolverem esse efeito dominó em que nos metemos.

Parece que é sonho. Mais da metade pesadelo, daqueles que a gente grita e a voz não sai, que a gente corre e não se move do lugar, quando de repente somos pegos desprevenidos, nus, e todos riem de nós.

Vergonha alheia, vergonha minha, vergonha de quem tem vergonha na cara em olhar para esse mundo de ponta cabeça. Injúria! Perjúrio? Queria eu. Parece mesmo pesadelo.

Queria um texto de alegria, de esperança. Por agora sai um texto triste, de respiro à procura de sobreviver a nós, mundo.

A cada amanhecer, levanto me dizendo que dias melhores virão. Parece sonho, metade ainda pesadelo, metade espera.


Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal do Blog Repórter Entre Linhas.


domingo, 20 de agosto de 2017

O tempo presente


Há dias em que conseguimos pegar o tempo com a mão. Como se tivesse corpo, ele nos enxerga. Essa comunhão traz calmaria nas águas de dentro, mesmo quando as tempestades transbordam. Mas para merecer esse encontro é necessário um atravessar - de dores, desculpas e planos. O tempo corre a nossa revelia.

É um sujeito indomável esse tempo que não se permite encapsular. Ora corremos em busca dele, ora contra, ora a favor dele. Quando o encontramos, o perdemos, aí lamentamos e recomeça a corrida maluca de encaixar as horas nos afazeres. Tudo de novo, sem ser nada novo, novamente. É um disparate essa moeda da existência. O tempo, a justa medida da vida que levamos.

Em algumas pessoas, no entanto, podemos reparar o tempo que parou. Nas memórias, virou fotografia da mente. As palavras não alcançam o hoje, ficaram lá nas brincadeiras de infância, ou nas recordações da juventude. O relógio da parede congelou sem avisar. Seguem jurando que no dia seguinte acertam os ponteiros, compram pilhas novas. Mas o que era movimento tornou-se quadro, denunciando a falta de sincronia.

Outros, por sua medida, estão sempre a projetar – trabalho, bens, família, viagens – desenhando a vida que se firma em uma estrutura própria, muitas vezes avessa ao esboço original. Mentes à frente do tempo, senhoras do futuro que se esqueceram de levar consigo o corpo e a alma. Todos os dias, transformam-se em três à procura de reunirem-se.

Confesso que já permaneci um bom período no tempo passado. Agora, tenho me percebido no tempo futuro, com essa mente que elabora e prega peças. Um anacronismo que leva à exaustão, já que não há de fato domínio sobre a vida, nem tampouco haverá.

Imagino o quanto de vida perdemos por não desfrutarmos o presente.

Meditar tem sido para mim um caminho para alcançar esse tempo presente. Surgiu como tentativa e há um mês tenho conseguido manter a prática diária. Começo a sentir os benefícios. A regularidade tem me permitido olhar para o tempo do lado de fora. Às vezes, vejo os segundos correrem sem régua. E há dias em que eles não saem do lugar. Fico curiosa como o mesmo tempo se mostra em perspectivas tão distintas. É como se o sol fosse poente, a cada dia, em uma janela de casa, convidando para uma nova vista.

Um dos grandes desafios desse tempo por dentro tem sido manter a mente junto ao corpo e ao lado da alma. As ideias do que pode vir a ser tornam-se uma poderosa dispersão. É o tempo do abstrato querendo se impor. É a ilusão de querermos ditar o fluxo e estabelecer metas que nem sempre nos levam ao melhor caminho.

A meditação, ou mesmo aqueles simples momentos que reservamos para sentir tudo o que acomodamos – pensamentos, emoções, sonhos e frustrações – é uma fonte de energia transformadora. Primeiro requer persistência (assim como a vida), depois mudança de hábitos com uma boa dose de resiliência, em seguida (mas não por fim) uma atitude de entrega e confiança – na vida, em si mesmo, no fluxo.

Manter-se no tempo presente é uma atitude contínua de aprendizado. O tempo é rei e é presente. Faz a gente alinhar corpo, mente e alma e acaba por trazer mais sossego ao coração. É quando a gente não tenta mais se impor ao tempo, porque ele sempre vai ser melhor que nossos ponteiros acertados.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas.





quarta-feira, 5 de julho de 2017

Como amar?


Poderia falar sobre escrever cartas apaixonadas, poemas, mensagens, ou sobre o medo de se declarar para a outra pessoa. Quem sabe seja melhor recuar, já que pode não haver correspondência do outro lado. Não. Talvez valha a pena arriscar, a espera dói mais do que permanecer na dúvida. De repente, tudo vai ficando em segundo plano, enquanto ouço um refrão na timeline do facebook. “Ninguém vai poder querer nos dizer como amar”.

Eu, que só conhecia Johnny Hooker de nome, fiquei absorta em “Flutua”. A música foi apresentada durante o programa de entrevistas do jornalista Pedro Bial. Flutuei em pensamentos. Ouvi duas, três, quatro vezes. Ouvirei mais. A melodia lembra estranhamente tempos que não vivi, sentimentos de uma revolução, toques de nostalgia. Entre as belas frases, importa tanto o fato de “ninguém vai poder querer nos dizer como amar”.

Eu não sei o que é certo para você, o que te faz feliz, tampouco você sabe sobre mim. Mas por que insistimos em conselhos que não foram pedidos? Quantas vezes ao dia, poderíamos recolher nossa fala, nosso “eu acho”, “você deveria”, “ele tem que”, e permitir a curiosidade de assistir ao capítulo seguinte de uma vida sem roteiros. “Meu amor, seja feliz”, como dizem muitos vídeos por aí. Seja feliz, que o outro também será, tateando os caminhos dele.

Ouvindo “Flutua”, algumas cenas acabam surgindo na mente. Vejo pessoas gritando sobre o que é certo, errado, esperado, adequado, ado, ado, ado. Observo dedos de desconhecidos apontando “verdades” entre si. É uma passeata? Um protesto? Não sei ao certo, mas parecem imagens cotidianas das vidas cruzadas. A razão parece virar abelha, ora zunindo no ouvido de um, ora no ouvido de outro. Na algazarra, todos querendo ter razão, dizer como amar, mas amar da maneira “certa”, porque deve existir “a fórmula do amor”, como queria Léo Jaime.

Mas “Um novo tempo há de vencer para que a gente possa florescer, e a gente possa amar sem temer.”, alerta Hooker. Que novo tempo é esse? Eu me questiono. Parece algo ainda tão distante, quando nos perdermos em traçar uma linha reta para a vida do outro, embora a nossa seja cheia de abismos e colinas. Quando o amor, algo tão genuíno e transformador, murcha em formas de papel untadas com sangue e óleo. Amar sem temer ainda flutua, às vezes, não raro, evapora.

Por que nos incomodamos tanto com a parede do vizinho, seus brindes e dedicatórias, se podemos ser felizes com a diversidade de uma pontuação sem vírgulas? Algo estremece por dentro quando vejo o outro esbravejar certezas de Deus. Um Deus que não é meu, não é seu, é de todos. Eu permaneço sem entender o mal que há em ver o outro ser feliz, amar do próprio jeito.

Um novo tempo há de vencer, Hooker. Creio que sim. Quando? Espero que não demore. Há pressa em ser feliz. Há urgência em amar. Precisamos. O mundo pede. Os seres, também.

Por hoje, fico o tempo do meu dia pensando sobre minha forma de amar sem medo, desajeitada. Às vezes, esqueço o quanto o outro está ali por escolha e o quanto não sou imortal, apesar de o amor ainda ser.


Texto escrito para a coluna quinzenal do blog Repórter Entre Linhas.

sábado, 20 de maio de 2017

Indo além da dualidade



Nascemos da unidade - o amor - e caímos na dualidade na nossa primeira grande mudança – o nascimento. O embate entre vida e morte assim que viemos ao mundo cria nossa primeira cisão, o momento decisivo pela vida. O sentimento de completude que vivíamos no útero não mais se reproduz. Lá dentro tudo era protegido, seguro, estávamos numa redoma, apesar de já captarmos o ambiente ao redor. Na vida, buscamos repetir essa perfeição.

Aqui fora, encontramos um mundo polarizado. Nossas percepções, principalmente com a crise que atravessamos, têm nos levado à dualidade. Hoje é tudo ou nada, bom ou ruim, certo ou errado, verdade ou mentira, culpado ou inocente, mocinho ou bandido. Temos nos distanciado do caminho do meio e da perspectiva de que estamos todos juntos no mesmo barco.

Os julgamentos vão fazendo parte inerente da nossa rotina, acompanhados de sensações de perda ou ganho. No automático classificamos situações, pessoas e objetos com rótulos definitivos que nos aproximam ou afastam. Aqui fora a visão parece estar turva, nossa temperança também.

Os ânimos aflorados nos levam a condenações sumárias e separações. Como ascender em meio a tantas decepções? Como nos acalmar por dentro se por fora está um caos? Como ir além da dualidade?

Essa semana, ouvi uma palestra com o jornalista André Trigueiro, na qual ele falava sobre transição planetária, momento que a Terra e nós humanos estamos atravessando para separar o joio do trigo nesta crise ética, moral e de relacionamentos. Uma crise sistêmica, global. Segundo ele, é como se tomássemos um vermífugo forte, amargo, mas que vai nos curar. Trigueiro destaca que durante essa transição é preciso persistir no caminho do bem, renovar todos os dias a nossa fé, selecionando o que vemos, ouvimos, comemos, e também as pessoas com quem queremos estar.

Talvez não estejamos mais aqui para ver a solução, diz o jornalista, pode demorar muito, embora já esteja acontecendo. Mas vale fazer a parte que nos cabe no tempo que dispomos na terra. “A vida é movimento, ação incessante o tempo todo. A hora é de assumir quem você é no tabuleiro e verificar se onde você está está bom. Se não, ainda dá tempo de movimentar sua peça no jogo.”, adverte.

As palavras de Trigueiro me levaram até minha Avó materna, base da minha educação. Ela me ensinou, na sua simplicidade e olhar firme, lições básicas que me acompanham ao longo das escolhas diárias. Conselhos nem sempre verbalizados, mas observados por mim como algo natural do ser humano. “O que não for seu, devolva”; “o que dever, pague”, “respeite os mais velhos”, “não dê cabimento a fofoca”, “isso não está certo minha filha”, “fale a verdade”, “não importa o que o outro fez, eu quero saber é de você, diga”.

Sabedoria de Vó parece milagre, acalma o coração dividido. Traz aquele sentimento de estar dentro do útero, protegida por mãos idosas e justas. Quando criança, se eu pensava em dar um jeitinho em alguma situação, vinha logo a voz na minha cabeça alertando - “minha Vó disse para não fazer isso”; “minha Vó disse que isso era errado”. Deve ser coisa de criança, mas ainda tenho esses pensamentos quando vejo os noticiários, quando observo o trânsito, quando quero dar desculpas para me enganar.

Às vezes eu penso que essa bagunça toda aqui fora do útero não tem mais jeito, é perda, traição, fim. Mas escuto André Trigueiro e ganho esperança. É perdão e recomeço. Oscilo mais um pouco vendo as notícias em todos os veículos falando sobre mentira, propina e um monte de palavrão. É tristeza e nervosismo.

Os movimentos pendulares cansam. Parece que estamos sempre arrumando uma bagunça, lembrando-se do básico da vida - ser inteiro e amoroso.

Volto à infância, para a rede embalada pela Vó. O coração tranquiliza, me vejo amassando seu cotovelo (mania de criança), alisando o braço dela geladinho e a escuto dizer “tenha paciência minha filha”.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas. 


sexta-feira, 12 de maio de 2017

Fotografias

Fui procurar umas fotos da infância para homenagem ao Dia das Mães e encontro várias fases da vida estampada em cor. Percebo que só tenho um álbum de criança com uma fotinha do batizado com meus avós, três de um aniversário no qual adorava a mesa decorada com guloseimas e duas de meus pais juntos me segurando no colo (raridade para se guardar no cofre). Mais umas quatro de quando bebê, as quais estranhamente parecem não ser eu.

Fotografias são as memórias do peito guardadas no papel. Quando a gente se vê refletido é um disparate. Voltam no tempo os sentimentos da época, nosso modelito desatualizado, o corte de cabelo rebelde, os programas com amigos, algumas dores e amores. Volta a fita dos problemas tão grandes vividos ali (com a nossa dimensão juvenil) e as inúmeras preocupações de uma vida adolescente.

Fico curiosa para saber quais os pensamentos naquele exato momento da foto. O que sentiam todos os registrados, o que tentavam conquistar e o que esperavam da vida. Como um corte no tempo, a gente vira mosca e relembra as cenas, imagina os porquês e se perde em devaneios.

Além da nostalgia das fotos antigas, em geral se tem a ideia de que estamos melhores, mais maduros, mais bonitos, mais vividos. Dá certo conforto sentir que a vida anda para frente, mesmo nos momentos em que teimamos usar a marcha a ré. Evoluímos todos, somente a estátua é que se deteriora.  E não temos essa vocação, porque nascemos do movimento e seguimos assim, embora os ponteiros às vezes pareçam enferrujar.

As fotos de antigamente trazem o ineditismo, outros ângulos, espontaneidade e sorriso mais livre de quando só tínhamos direito a algumas poses. Registravam as emoções, mais do que pessoas olhando para a câmera. Não era preciso perfeição nem o melhor perfil. O sentimento estava nos dois lados.

Eram momentos genuínos da festa de criança, com lembrancinhas nos copos plásticos que viravam coelhos, cestinhas e o que mais a habilidade da nossa mãe permitisse. Era uma mão não se sabe de quem cortando a foto. E seres desconhecidos. “Sabe quem é esse aqui? Não, e você? Também não. Deve ser fulano. Não, é sicrano. Ah sim, é o filho da comadre Chica!”

Na foto, aquela mãe também não é a mesma de hoje. O sorriso e olhar ingênuos completavam a calça boca de sino, os móveis dos anos 1970 e o calendário na parede. Os sonhos de ontem são tão diferentes dos de hoje. Assim também a criança de vestidinho bordado, casinha de abelha, agora em outras vestes.

Do álbum de infância para 2017 correu um rio, vazou um mar. Hoje são outros doces, novas alegrias e mais desafios. A mãe foi, a Vó também. A mãe voltou, como nos laços de presentes que refazemos par ficar mais enfeitado. Essa história de olhar álbuns dá nisso, a gente se revisita e se reinventa.



sexta-feira, 5 de maio de 2017

Uma Fala Carpinejar


Uma noite refrescante. Ouvir o escritor gaúcho, Fabricio Carpinejar, conversar sobre como ser “feliz por pouco e transbordando por muito, como ser feliz criativamente”, nos lembra do tempo para o afeto, do abraço sentido, do contato honesto com o outro.

Carpinejar, que uniu os sobrenomes da mãe (Carpi) e do pai (Nejar) para se fazer inteiro, para aproximar os pais em seu imaginário afetivo, diz que só foi ser poeta para buscar o pai. “A poesia é uma longa carta que eu escrevi para ele”.

Ele bem alerta, “a gente só se resolve quando fica em paz com os pais”. O escritor das palavras descreve os impasses do coração e adverte que o grande problema da felicidade é que a gente sempre acha que o outro pode ser melhor do que ele realmente é. “A gente cobra do outro uma perfeição”, quando nós mesmos estamos longe disso.

A felicidade passa, portanto, pela paz com o passado, com nossas raízes, nossa história. Se olharmos bem, dá até para perceber pedacinhos de nós fincados no corpo dos sete anos, no muro da nossa casa da adolescência, nas conversas das madrugadas com amigos, nas memórias com o “ex”. Ficamos por lá?

Para ser feliz criativamente, anuncia o poeta, é preciso sair de si, do egocentrismo e observar o outro. Alimentar a curiosidade e se reinventar a cada dia em novas linguagens.

Em tempos virtuais, Carpinejar contesta a criatividade desperdiçada ao se odiar tanto o outro, “criamos todo tipo de insulto, mas no elogiar somos reticentes. Para destruir alguém usamos todas nossas reservas ideológicas”. Porém, nossa real dificuldade está em encarar os próprios defeitos, na tentativa de esconder nosso monstro interior.

“O quanto nós fazemos no dia somente para provocar?”, questiona. E o pensamento vaga por aquelas pequenas discordâncias diárias, que nem sempre deixamos passar pela irresistível vontade de ter razão, em tudo. Mas a felicidade não mora na razão. E sabiamente o poeta recorda, “com o tempo eu percebi o que é ter razão se tu pode ter amor.”

O homem que escreve para destruir janelas, de fala emotiva, ora aos gritos, ora baixinho, comove. Sensibiliza pelas frases simples, qual conselho de amigos, mas firmes como os relâmpagos rasgando o céu. Ele nos convida a falar com o coração, pois sinceridade não é reproduzir o que vem à cabeça, mas conciliar os dois tempos – o da fala e o do coração – porque o outro pode não estar preparado para ouvir o que você tem a dizer.

A fala Carpinejar nos leva a parar, a sentir, a recuperar a felicidade pelas coisas simples, a não dar nada por garantido, mas a aproveitar o tempo presente para dizer o quanto amamos. “Porque o mais difícil na vida não é se reinventar, é se assumir.”


Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas. 

Eu te Abraço


Amiga-irmã, hoje sou eu quem seguro a tua mão, na mudança de papeis que a vida nos encoraja a experimentar, sem ensaios. Lembro-me de quando, há dez anos, você fazia o mesmo por mim, enquanto eu me despedaçava por dentro ao ver minha amada Vó partindo. Hoje é você quem se despede do seu amado Pai, hoje nos tornamos mais cúmplices. Eu te sinto e te entendo. Eu te abraço como as almas que se aproximam sem nada dizer.

Fico emocionada ao saber que, assim como eu, embora para poucos, você tenha tido a oportunidade de estar ao lado dele, segurando a mão nos suspiros finais, na "hora sagrada" como você mesma nomeou, que é o momento da travessia. Você pode sentir o silêncio, o tempo parar, enquanto os anjos diziam amém e levavam seu Pai nos braços encantados da luz.

É revelador e há uma beleza na hora derradeira. Para quem tem a oportunidade de vivenciar essa passagem, ficará para sempre como um momento mágico, apesar de toda dor, mesmo com tanta saudade. Haverá gratidão pelo tempo dado, pelo tempo vivido, pelo que pode ser. Todos deveriam ter esse direito, ter a benção de viver o instante final ao lado dos queridos, de poder dizer com tanto amor: "siga em paz".

Com a partida do seu Pai, revivi os meus adeus, os concretos e os imaginários, e pude perceber os adeus simbólicos nos olhos dos outros, refletindo as próprias despedidas, muitas ainda não realizadas. A sua dor nos perpassa e nos soma à dor global da separação, que nos torna tão humanos, tão finitos em corpo de gente.

Caminhando ao seu lado, abraçando seu corpo tão fragilizado naquele momento ritualístico, sinto sua emoção e me torno una com seu movimento, torcendo para que você atravesse sem tanto pesar. Queria poder tirar alguma carga dos seus ombros. Queria, tentei.

Fico angustiada pela hora do “baixar o caixão”, aquela etapa em que nosso corpo vacila com o derradeiro adeus à materialidade. Depois, só lembranças. Boas lembranças, decerto. Porque o amor suplanta as tribulações dos momentos finais e parece resumir os desafios naquele grande sentimento inenarrável que liga as almas em essência. O Amor.

Nas últimas flores brancas jogadas, pude notar como caíam sobre o homem que cobria de cimento o espaço retangular. Uma chuva de pétalas, de votos lançados por sobre o outro, que ali estava junto ao teu, para guardar, para eternizar. Não sei quantas flores o homem de verde recebeu naquele dia. Sei que aquelas das 14h30 tinham o orvalho do dever cumprido, do "jamais retroceda", do "seja bem sucedida", como seu amado costumava profetizar.

Voltar para casa é duro, eu sei. Encarar o vazio das horas miúdas, do quarto que exala um cheiro de saudade. Não há atalho para atravessar este mar. Queria te levar comigo para passear, para ver a vida que chama lá fora, agora que é livre para novas escolhas.

A coruja pintada em teu corpo deve te guiar nessa jornada de aventuras, que com certeza te espera nesse recomeço. Que as borboletas soprem no teu estômago, lembrando de que sempre é tempo de "sol-te", como está escrito em teu braço. Solte o que já não te serve mais e sejas feliz!

Que o dente de leão sopre tua sorte para campos infinitos de descobertas gentis, aquelas possíveis nas almas de criança. Eu te abraço e digo que estou aqui, porque é isso que os amigos fazem. A cada crescer de asas, permanecem.

Texto originalmente escrito para o blog da professora Dalu Menezes.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Não existem vidas comuns

“A grande pergunta que move minha vida é perceber como cada um inventa uma vida. Não existem vidas comuns, nossos olhos é que são domesticados.”. Com a fala mansa, pausada, reflexiva, Eliane Brum foi habitando todos os presentes no auditório da XII Bienal Internacional do Livro do Ceará. Uma palestra despretensiosa de segunda-feira sobre como “toda pessoa constrói uma versão da história a ser contada”. Ouvi-la aguçou os sentidos e abriu a alma.

Jornalista, escritora premiada e uma profissional de sensibilidade peculiar, Eliane Brum foi ainda mais surpreendente ao vivo. Enquanto discorria sobre sua vida e profissão, tinha uma fala doce, frágil, que emocionava a plateia. Às vezes parecia que aquela mulher de vestes pretas ia quebrar, se partir em histórias miúdas com vários protagonistas. Mas Eliane era firme e seu relato preenchia a sala de atenção e tensão, como aquelas vozes inebriantes que às vezes colocamos para ouvir antes de dormir.

Parecia haver floquinhos voando no ar, pude ver, enquanto todos prendiam a respiração para não perder um momento sequer, diante de um silêncio perturbador, diante da vida comum, “a vida que ninguém vê”. O público se repartia por dentro para alcançar aquela imensidão de relato.

Também impactado, o jornalista, escritor e um dos curadores da Bienal, Lira Neto, mediava uma palestra que pareceu voar. Duas horas com ponteiros de vinte minutos. A vastidão de Eliane extrapolava. “Eliane, você sabe que está nos emocionando, não é?”, perguntava Lira.

A escutadeira curiosa, como ela mesma se definiu, se disse habitada pelas diversas vozes das pessoas que se abrem para contar suas histórias, a cada vez que busca descobrir qual a delicadeza que torna a vida possível, mesmo com tanta violência ao redor.

“As palavras têm um espaço vital na minha vida. Escrevo para não matar, escrevo para não morrer.”, contou a autora explicando que não escreve para apaziguar ou encontrar respostas, mas para desacomodar. E o primeiro movimento passa por se desacomodar, despir-se de si, desabitar-se para ser habitado pelo outro. Ir o mais desabitado para vestir esse outro jeito de ser e estar no mundo, e só depois empreender o caminho de volta. Um processo que se faz essencialmente pela escuta, destacou ela.

Um caminho perigoso, arriscado, esse tal encontro com o outro. Não há garantias do que vamos descobrir do lado de lá. Enquanto todos buscam certezas, Eliane fala em incômodo, em dúvidas. É perturbador.

A escutadeira da vida que ninguém vê nos chamava para o olhar da delicadeza. Falou de morte, de tempo, do vazio, de cicatrizes e dos Brasis que ainda esperam por ser contados. Revelou sobre impotências, e sobre os momentos de estanque no seu processo de escrita, período em que procurava conexão entre os fatos observados e o que fazia sentido ser narrado. “Escrever é o possível, não é pouco nem é muito, é o possível.”

Suas palavras me chegam, me alcançam, me embalam e acordam. Tenho tentado “desdomesticar” os olhos, os sentidos, e me abrir para as histórias das vidas invisíveis, que nunca são comuns. Desconstruir é necessário, é trabalhoso, mas “não tem nada mais brutal do que estar à margem da narrativa, ser invisível.”, nos ensinou a escritora, que entra gentilmente no universo do outro enquanto pede para as pessoas mostrarem o próprio mundo. “Me conta...”, é seu ponto de partida.

Eliane é contundente e de um falar poético. Suas frases se encaixam com um lirismo que nos faz imaginar quanta vivência cabe ali. Ela viu gente, abandono, dor, vazio, viu “desacontecimentos”, como tantos de nós. Porém, sua narrativa é resistência em uma época de imediatismo, julgamentos sumários e ódios virtuais. Ela resgata o olhar do observador, que dá tempo para a vida se revelar, sem pressupor as respostas, sem prescindir da atenção.

Eliane nos lembra de que não há vida banal, há vida, há desassossego. Testemunhas, personagens, narradores, somos partes do mesmo mosaico que se forma enquanto tentamos justificar a existência, diante de dias caóticos e pulsantes.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.




quarta-feira, 5 de abril de 2017

Destemperados


Manhã de uma terça-feira. Três horas de espera na fila do banco e as reclamações começam.

- Estou aqui desde dez horas, isso é um absurdo! - protesta um.

- É assim que vocês tratam os correntistas de vocês?! – questiona indignado um homem alto.

- Senhor, falta muito para minha senha? Estou passando mal de fome. Cheguei muito cedo e nada de eu ser chamada! - desabafa uma senhora junto ao gerente.

- Que prioridade é essa que a gente fica esperando sem fim?! – reivindica uma idosa.

E o coro vai aumentando, até que um senhor levanta e brada a plenos pulmões:

- Isso é um desrespeito!! Vocês saem para comer, mas a gente fica aqui feito besta! Duvido que o senhor gerente fique sem almoçar! Mas a gente não vale nada!

Os demais, que também esperam, aplaudem, balbuciam as próprias queixas e, após segundos, vão se calando. O gerente responde:

- Senhor, somos só nós três atendendo. Não tem mais funcionários e dez mil se aposentaram. É o jeito esperar a sua vez.

Minutos depois, o gerente sussurra para uma funcionária:

- Viu aquele senhor gritando? Como sempre, é um devedor. Depois pede ao fulano para olhar o caso dele.

Ao meu lado, uma mulher cisma com um suposto casal enquanto o homem, que carrega uma criança no colo, vai pedir informação ao funcionário:

– Olha! Ele traz a criança para ter prioridade na fila. Aquela ali deve ser a mulher dele!

Uma desconhecida participa da conversa no ar:

- Tenho certeza que ela podia ter ficado em casa! Pra que saíram os dois sem necessidade?! São muito é sabido.

Uma manhã e tarde olhando para senhas piscando no visor e a sensação de total impotência e desperdício de tempo. Assim foi minha última ida ao banco.

Desde pequena, não sou afeita nem a instituições bancárias tampouco a dirigir no centro da cidade. Quando tenho um compromisso assim, sinto que aquele será um dia difícil de atravessar. Meu pai, tempos atrás, confessou ter o mesmo sintoma. Sendo genética ou não, o fato é que sempre tive pesadelos nas idas ao banco.

Primeiro fico em constante alerta por medo de assalto. Olho o movimento dos guardas, a porta giratória barrando alguém. Imagine, ser refém naquela manhã chuvosa, quando você ainda tem muito o que fazer?! Se der azar e os clientes tiverem que tirar a roupa?! Meu Deus, passar a temível vergonha das peças íntimas descombinadas. Terror para um imaginário fértil.

Depois, tenho a impressão de que as idas ao banco são pura perda de tempo, quando não se consegue resolver as pendências pela internet, telefone ou caixas automáticos. No meu caso, o cadastro voltou aos dados antigos, por inexplicável vontade do sistema, emperrando operações futuras. O gerente, não resolvendo o problema, pede que eu ligue para o autoatendimento. Então, por que me mandaram à agência?! “É o sistema, não posso fazer nada.”, explica o gerente.

Além disso, não raro, as informações entre agências do mesmo banco também diferem e você se pergunta onde está o treinamento? Mas isso é bobagem, seu tempo é barato e a gasolina também. Numa hipótese mais animadora, você ainda ganha o direito a contracenar no espetáculo de teatro amador, desses de uma terça-feira comum.

Pause. Você se imagina protagonista da cena, batendo o telefone do gerente com toda a força, joga uma pilha de papéis no chão, sobe na cadeira e convoca os demais para um motim. Quadro típico de “Um Dia de Fúria”.

Play! Você se dá conta do quanto deve ser estressante trabalhar em banco e ter que ouvir todo dia aquela ladainha de clientes reclamando de filas com mais de três horas, e ainda ter o atendimento sempre interrompido. "Pode me dar só uma informação, por favor?!"

Pause. Você olha ao redor e nada naquele ambiente parece estar feliz, nem clientes, nem funcionários, nem o guarda, nem a moça que presta informação na entrada do banco e conversa tranquilamente com uma segunda funcionária, sem se importar com as pessoas na filando esperando a triagem inicial das senhas.

Play. Você sai do banco sem resolver sua questão e pensa em como o dia foi arrastado. Torce para que amanhã não tenha que voltar à agência e reviver as cenas de uma novela que não vale a pena ver de novo.

Talvez o rapaz que vende milho cozido na saída do banco tenha tido mais sorte e fature algum com a espera alheia, ou o flanelinha receba uns trocados, se tiver paciência em aguardar sua volta após um expediente de cinco horas. Difícil deve ser para a loja de flores ao lado, vender bombons, pétalas e romantismo para os que saem destemperados das filas de banco.


Texto escrito para minha coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.

segunda-feira, 20 de março de 2017

A Vida como vem

Ao meu lado a mãe repetia: "Eu disse filho que não ia doer. Você precisa confiar na sua mãe." E o garotinho, que antes berrava durante o exame de vídeo deglutição, assentiu como criança: "É mãe, é que eu pensei que ia doer. Mas você também um dia já foi criança.". Enquanto eu esperava minha vez no exame, escutava aquelas “coisas de mãe e filho”, sentindo a sabedoria da vida na cadeira ao lado.

E lá volto eu para a sala de espera, agora aguardando o laudo do exame, pronta para seguir a tarde de quarta-feira. A vida, no entanto, tinha mais nuances para me mostrar, ainda sobre as delicadezas maternas.

Ela passa nervosa ao lado, preocupada com a mordida de mosquito na perninha do rebento. "Eu fico paranoica, sabe, com essas picadas.", desabafou enquanto já sentava ao meu lado puxando conversa. E bastou uma pergunta para desenlaçar a própria vida.

Já era mãe de um garoto de onze anos quando o ventre pulsou novamente. "Meu filho pedia um irmãozinho, eu e meu marido começamos a querer também. Passamos dois anos tentando e nada, até que uma tarde parei e conversei com Deus. Eu disse: Senhor, manda meu filho. Eu aceito por inteiro, como ele tiver que vir.”.

Eu ouvia admirada aquele relato sincero, de estranha para estranha, de uma mãe para uma mulher que ainda está emaranhada nos novelos da endometriose. A simplicidade do olhar, a calma na fala, revelava a confiança da desconhecida. “Eu sentia que ele viria especial. Algo dentro de mim já avisava, e eu estava pronta para receber.”.  Seriam as tais “coisas de mãe”, que a gente nomeia de várias formas, entre elas a de sexto sentido materno?

A jovem senhora me contou que o pequeno garotinho tinha microcefalia, diagnosticado poucos meses após o nascimento. “Peguei Zika no começo de 2015, com dois meses de grávida, quando ainda nem se falava dessa doença e os médicos não sabiam das complicações para o bebê. Mas durante toda a gravidez eu me blindei de más notícias.”. Explicou que a estratégia, inconsciente ou não, a ajudou a completar a gestação sem intercorrências.

“Hoje ele é nossa vida e uniu mais ainda nossa família. Meu marido é alucinado por ele.”, contou enquanto cheirava o filho amorosamente. O garotinho de um ano ainda não conseguia andar, com as pernas rígidas, olhava fixamente para a luminária no teto. “Percebi que eu não tenho controle sobre nada. E o tempo certo é o tempo de Deus.”, concluiu.

Aquelas mães me trouxeram falas sobre confiança e entrega, me fizeram questionar que parte de nós, ao sonhar, ao desejar, se rende de fato a tudo que vem e como vem. Estamos preparados para esse voto de confiança e rendição? Estamos abertos para abarcar o todo que envolve nosso desejo?

Por vezes, enquanto a gente faz planos sobre a vida, o controle remoto parece estar sem pilha. A gente tenta mudar o canal, decidir o que assistir, aperta, clica, se irrita, mas nada acontece no tempo que esperamos. É como se existisse uma programação independente, a nossa revelia. Para aquele dia, tinha me preparado para um exame e duas visitas à família. Não imaginava que receberia bem mais de uma tarde na clínica.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas.

O lugar da velhice

Ela já não caminha tão confiante, repete as perguntas, esquece as respostas, troca os nomes e fala palavrões com mais facilidade. A jovem senhora bagunça a rotina, rebelde não aceita remédios, tampouco as fraldas para as incontinências; teima em desobedecer regras que a família tenta impor, logo ela que sempre foi dona da própria vida.

A descrição pode ser de um parente próximo, ou daquele vizinho que vimos escorrer os anos, talvez um conhecido de outra geração que vai se aproximando do primeiro lugar na fila. Eu conto nos dedos uma porção e acredito que você também. Eles ocupam nossos espaços em um amanhã, nesta “previsível” dança do destino.

Uns sofrem mais com o afastamento dos entes, outros se perdem entre a solidão das casas de repouso, ou vivem sob a lembrança de um parente tão imaginário quanto real em seu sentir. Balbuciam coisas em sua tenra inocência, de volta ao casulo que lhes é peculiar nesta temporada. Alguns resistem com mais lucidez, persistindo nesse disparate chamado velhice.

Tomando café em uma tarde da semana e conversando sobre questões de família, ouvi uma frase que vem me acompanhando estes dias: a velhice é uma espécie de loucura. A sentença ficou martelando na cabeça e me fez pensar sobre o lugar da velhice em nossas vidas, se é difícil para nós aceitar esta etapa, ou se nos cabe um peso imenso pela recusa.

Certa tarde, por coincidência (tal o sincronismo da vida), li um emocionante texto da jornalista Eliane Brum, no qual relatava a perda de seu pai amado e o quão doloroso foi o processo no hospital, sem poder se despedir dignamente ou acompanhar a passagem paterna. Eliane disse que "ao entrar num hospital para morrer, deixamos de pertencer a nós mesmos" e lembrou que "o fim de uma vida é ainda vida - e não morte".

Como se não bastassem os descaminhos da velhice, ainda enfrentamos vários tropeços neste fim, que ainda é vida, como diria Eliane. Uma fase que vem mesmo nos desafiar, misturar os planos e desfazer nossas certezas. Do lado de cá, enquanto não velhos (somente por hoje), assistimos o apagar da chama; do lado de lá, enquanto protagonistas no palco, eles se veem a mercê da interferência alheia, sentindo o corpo murchar, perdendo a autoria da vida. Lembro-me da minha Vó lamentando a aparência da mão, tão cheia de manchas e enrugada, era como se a mão não fosse dela. Não reconhecia o próprio corpo.

É de dar nos nervos ver a vida assim, solta, sem controle. Os fios em curto circuito e a gente querendo remendar o que não tem conserto, o corpo vai envelhecer. Como ouviria naquela tarde de café, cedo ou tarde vamos entrar nesta espécie de loucura. Mas como atravessar tudo isso com dignidade, quando não raro perdemos a compostura e a paciência? Recordo o que eu repetia para mim, enquanto via minha Vó definhar, apesar dos meus cuidados – “é preciso amor, muito amor”!

Ano passado assisti a um tocante documentário, “Alive Inside”, que abordava a temática. A película mostrava o poder da música como recurso para resgatar a identidade dos idosos, principalmente daqueles que sofrem com a ausência advinda do Alzheimer. Foi intenso ver a conexão com aquelas pessoas, antes tão absortas em seu mundo, tornarem-se vivas após simples acordes da juventude. O vigor aflorava quando a música visitava os lugares esquecidos. Afinal, "o fim de uma vida é ainda vida - e não morte”.

No filme, um dos cientistas questiona quem somos nós sem a nossa memória e qual o lugar da velhice no mundo atual. De acordo com ele, os idosos são vistos como uma parte quebrada, após o auge de uma vida adulta, sendo fundamental encontrar de novo o lugar deles no mundo.

O tal cientista apontava ainda para a indústria da velhice e o dinheiro envolvido nesse mercado - lares de idosos, remédios, hospitais, planos de saúde – lembrando-nos do objetivo predominante desses recursos - esconder nossos idosos. De fato, não é prático envelhecer, principalmente quando se tem a saúde tão fragilizada. Não dá para tomar cápsulas milagrosas e fazer o espanto passar. “Ontem ela era tão forte e hoje está acamada...” Ouvimos essas lástimas frequentes.

Para atravessar essa “loucura” muitos varrem os tormentos para baixo do tapete. Mas a vida sempre cobra seu preço e a morte também. Quando o corpo se vai ficam os remorsos do que poderia ter sido e logo será nossa vez na fila. Nos tornaremos protagonistas para qual plateia? É, o corpo pode ir, sempre vai, mas o que fica é humanidade, sem contraindicação, a qualquer tempo, sem prazo de validade.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Versões

Tempo atrás uma amiga da minha mãe me reencontrou no Facebook, pela mágica da rede em reatar pessoas nos momentos e lugares improváveis. Há uma porção de anos tal amiga mora na Suíça e desde nosso novo “olá” vamos aproximando nossas vivências. Pelos relatos dela, tenho conhecido minha mãe, uma outra, diferente da época em que eu tinha corpo de sete anos com preocupações de vinte.

No primeiro fim de semana de janeiro passamos um tempo juntas, eu e essa amiga, que veio ao Brasil fugir do frio europeu com direito a shortinho, chinela de dedo, conversas e muitos drinks; tomamos um longo banho de mar e reavivamos memórias na praia que tanto molhou nossos carnavais e infância – Paracuru.

Onda vai, onda vem e a amiga me relata que fui concebida com muito amor e desejo pelos meus pais. Uma novidade, pois até então eu só tinha descoberto que fui gerada para segurar uma relação, como nas diversas famílias que se formam (ou não) por aí. Mas já na época não cumpri a difícil missão de manter o casal unido. Uma árdua tarefa para um bebê que acabara de chegar ao mundo. 

Conversar com essa amiga (da minha mãe e agora minha) trouxe uma conexão com minhas raízes. Ela fala de uma mulher e de um homem (meus futuros pais) sob os olhos de contemporânea, que experimentou juntamente com eles as agruras da adolescência, as decepções e farras da juventude. Namoradinhos, brigas, traições, enredos de um típico Barrados no Baile à cearense. Entre risos, me vi ali representada, lembrando-me das minhas próprias desilusões e desventuras, como meus pais também já o fizeram um dia.

Os detalhes de conversas que não participei me levam a imaginar como era ser minha mãe no seu tempo de adolescente, a pensar sobre os sonhos que alimentava, os planos interrompidos, se era ou não uma amiga leal. Não tenho em mãos a versão dos demais personagens para criar um molde dos anos 1970. Apenas suspeito o que deva ter sido, me perco em suposições.

Ouvir uma parte da sua vida contada por outra pessoa, sob o olhar da câmera três, da testemunha, me confirma o quanto viver é um mosaico.  Sob diversos ângulos, vamos unindo as “verdades” que nos contam em uma colcha de retalhos, na busca de reconstruir nossas origens. Pinçamos uma história aqui, costuramos com uma revelação ali e assim tecemos nossa versão sobre a teia da vida.

A mãe que essa amiga me apresentou não é a mesma que experimentei, e tampouco será a mesma mulher que foi para meu pai, ou a filha que conviveu com minha Avó, reunidos os discursos individuais. Também deve ter sido diferente a amiga da minha mãe dos anos 1980 desta que se apresenta diante de mim, nas ondas de 2017. E hoje, eu, que antes era apenas um projeto de gente, vejo aqueles esboços de pai, mãe, amiga da mãe, pintados sob novos matizes, bem mais coloridos e vivos.


A amiga me chama de “minha menina”, acho graça, me rejuvenesço e bate uma sensação de voltar no tempo, quando ainda me lembro de sua voz rouca, sempre festiva, invadindo minhas recordações sonoras. Ah, isso não mudou! Tem gente que nasce com esse fogo interno, que não se apaga nem com as intempéries (nem com inverno europeu!). Com a mesma altivez ela se manifesta hoje, com a alma de quinze anos e a ousadia dos “enta”.