quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O desconhecido que nos toca

Uma situação inusitada ocorreu semana passada. Eu a conversar com uma colega na faculdade quando alguém me toca nas costas, desliza pelo meu braço e finaliza com um aconchego de mão com mão. Uma desconhecida me sorriu e eu sorri de volta. Foi automático.

Poderia ser mais um daqueles episódios no qual queremos nos lembrar do nome da pessoa (quase na ponta da língua) e fingimos conhecimento, evitando o nome do fulano para não passar vergonha. "Cara, você tá ótimo!", "Rapaz, há quanto tempo?!", "Menina, por onde você anda?". Vocativos em boa hora.

Esse não era o caso. De costas eu poderia parecer com alguém do convívio dela. É, as costas enganam.  A pessoa era uma ilustre desconhecida da minha rede de não conhecidos. Mas não houve falta de graça, apenas olhar com olhar e naturalidade. Leveza de quem aceita o improvável da vida, que vem com ônus e bônus. Às vezes mais bônus que ônus, quando simplesmente nos deixamos levar.

A mão da desconhecida me afagou com espírito brincalhão, simples, de quem não sente vergonha de se expor, de errar, de procurar um contato. Lembro dos casos em que alguém conhecido cruza nossa rotina e preferimos não dizer olá. Dá trabalho, pode nos atrapalhar, temos preguiça. Ela não. Passou, sorriu e foi, assim como passamos, sorrimos e nos (des)encontramos diariamente.

Um cumprimento nada custoso, mostrando que podemos estar abertos ao desconhecido, sem temer o ridículo, sem sermos tão escravos da lógica. E se todos os dias falássemos com algum "estranho"? Um bom dia solto no trânsito, um olá passando pela rua, um bem vindo ao imprevisível do dia.

O desconhecido nos sorri diariamente. Sintonizemos. Há mais espaço para esta poesia da vida, que ocorre quando damos chance ao acaso. Não aquele acaso que mexe com nossa segurança (desatenção em lugares perigosos). Aquele outro, o estado de alma sem pretensão, que admira o simples e ainda se surpreende com a delicadeza.

Era véspera do meu aniversário e o desconhecido veio a mim. Me presenteou com o calor humano, tão necessário e às vezes tão raro. Por um momento, saí do automático.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O melhor da vida é a Vida

É época de festejar a vida, mesmo que simbolicamente, já que a celebração deveria ser diária pelo presente que recebemos todos os dias ao abrir os olhos. Meu amigo me questiona por que adoro bolo e parabéns. Eu digo que a vida deve ser celebrada.

Aniversário é isso. Aquele momento que a gente se dá o direito de dizer em voz alta - "eu agradeço". A hora em que apagamos a vela para os três desejos. Oportunidade de nos autorizarmos a receber abraços calorosos.

Em tempos de festas pomposas, recordo das lembrancinhas que minha mãe fazia utilizando apenas copo plástico, cartolina, cola e tesoura. O resto era criatividade. Nós crianças adorávamos. Esperava cada ano pela mesa toda decorada com bombons, biscoitos, docinhos e alegria.

Em 2016 celebro a troca de idade com mais força. Descobri, por acaso, no início do ano um tumor na base do cérebro. Logo eu que repetia "só entro na faca se for questão de vida ou morte". Ou então “espero nunca fazer cirurgia da cabeça ou do coração”. Pois é, entrei para a estatística.

Entre o diagnóstico e a cirurgia, que fiz em Curitiba, levei pouco mais de um mês. Soube do "imprevisto" antes do carnaval. Aproveitei o período como uma espécie de despedida. Poderia ser minha última serpentina. A operação seria delicada, com possibilidades de sequelas, uma longa recuperação e talvez até morte.

Reuni as forças internas e segui numa espécie de transe. Sabe quando a gente não pensa? Foi assim. Não houve revolta, apenas um comando interno de "siga". Muitos oraram por mim, conhecidos, desconhecidos e família. E lá fui. Me internei em uma terça e operei na quarta.

Lembro de ser levada ao centro cirúrgico, esperar uns trinta minutos olhando para um relógio na pré-sala. O teto branco. Ali na maca de ferro, eu respirava pedindo confiança. Acordaria depois?

As últimas palavras com minha voz ainda normal foram para a anestesista. Uma japa de longos cabelos, com tom suave e experiente. "Minhas veias são finas. Por favor, não me deixe acordar no meio da cirurgia", supliquei. O médico, o expert, não vi. Duvidei se ele mesmo tinha me operado, mas ali não cabia questionamento. Apenas rendição.

Acordei sim. Já na UTI, sem conseguir engolir a saliva e com uma réstia de voz. Viva. O doutor veio, e como um holograma sussurrou perto de mim: "tirei tudo, você está curada". Dei graças e fechei os olhos. Foram oito dias de hospital. Noites em claro, dieta enteral, remédios, fisio e fono.

Ao receber alta, o médico da equipe deu uns três meses para eu me livrar daquele fio que caia no estômago. Perplexa, eu chorei. Voltando para casa do meu primo, que junto à esposa e filhos me acolheram por um mês, passei vinte dias com uma sonda nasal, sem engolir absolutamente nada.

Na luta diária, tudo que eu mais desejava era um gole de água. Mas não dava, não descia. Eu chupava gelo para amenizar a secura dos lábios, mesmo que para minha ilusão, já que eu não engolia. Tive crise de pânico devido às noites sem dormir, aos vômitos e aos engasgos. Meu corpo tremia. Contei com o apoio do marido, família, amigos, fono e a espiritualidade.

Sem voz, me descobri limitada, incompreendida e com raiva. Como eu iria exercer o Jornalismo sem a fala? Eu balbuciava e ninguém me entendia. Eu fazia mímica e só confundia mais os outros. Mas a fala não era o todo, apenas parte. Eu teria que perseverar.

Voltando para minha cidade, optei por começar uma análise. Seria um espaço para restabelecer meus limites e perceber o que dou conta neste momento. Vejo que é ocasião de me reinventar. E constato o quanto a recuperação é parte fundamental do processo.

Então é chegado 25 de agosto. A prega vocal esquerda continua paralisada, minha voz está rouca (que eu brinco chamando de romântica), algumas pessoas ainda desligam o telefone na minha cara por não me ouvirem direito. Ontem foi um dia desses. Talvez imaginem que seja trote, sei lá. Eu penso sobre o que fica quando o pior já passou. Afinal é o que todos dizem: "seja grata, o pior já passou". É verdade, o pior já passou e eu sou grata. Mas preciso acolher esse estranhamento e isso não significa ingratidão.

Agora há um misto de vazio (a vida mudou) e uma reacomodação é necessária para dar novo sentido às coisas, às pessoas, às escolhas. Sabe quando a gente toma um grande susto, vê a morte de perto, ou congela diante de um perigo? Então. Depois o corpo treme e busca se realocar no tempo e no espaço. Por isso, neste aniversário quero dizer novamente sim a Vida, sim à coragem e sim aos meus limites. Afinal, o melhor da vida é a Vida.

sábado, 20 de agosto de 2016

Quando a vida pede menos esforço

Diz o mantra da prosperidade, de autoria do terapeuta americano Bob Mandel, que “toda energia que você usa tentando e se esforçando poderia ser facilmente aplicada para agir com facilidade e prazer”. Bob nos convida a abrir mão da ilusão de que estamos trabalhando arduamente, quando tudo o que fazemos é nos esforçar para atingir metas que, na realidade, resistimos em alcançar. Portanto, “pare de fazer esforço e avance com facilidade, confiança e alegria”, esse é o chamado.

Neste tempo de Olimpíadas, temos visto muita disciplina, resiliência e superação. Observamos a energia de atletas que transformam desafio em coragem, com direito a erros, acertos e frustrações. Porém, na rotina real dos frequentadores de esporte de final de semana, vivenciamos um diferente tipo de resistência. Aquela outra que acredita que somente o esforço e a dor levam à vitória.

Quando nos esforçamos demais, talvez seja apenas a vida nos convidando a ir mais devagar, a tomar outro rumo. Pode ser aquele batido sinal (que teimamos em não ver) de que o “caminho não é por aqui”. Você já viveu algo parecido? Teve aquele dia em que as pretensões foram todas desmontadas pelo “acaso”, na medida em que algo maior agia? Dia em que as expectativas escorreram pelo ralo e só restou se render?

Pois bem, desistir nem sempre é sinônimo de fracasso, e também não é algo fácil. Porém, saber quando é hora de parar, ou mesmo de recuar alguns passos ou decisões, é uma sutil percepção que nos salva de muitas roubadas. Você convida um grupão para uma festa e poucos comparecem. Celebre com os presentes. Isso não significa que você não merece amor e atenção. Afinal, nem tudo é sobre você. Os outros também têm as próprias questões a cuidar. 

Pode ser que aquele emprego, há tanto almejado, agora esteja disponível justamente quando você acaba de aceitar outra proposta. Siga. Seu trabalho é requisitado para outro ambiente e isso não depõe contra sua competência. 

Sabe aquela pessoa que você pensava em construir uma relação, família, cachorro e papagaio? Pois é, está em outra parceria. Paciência! A vida mostra que as pessoas cruzam nossa vida para aprendizados. Ficar ou partir é apenas parte desta jornada. O jeito é recolher o coração e agradecer pelo que passou. 

A doença ronda seus entes já velhinhos? Resiliência. O natural da vida vem com fins e recomeços. Demonstre o quanto aquele ser é especial em vida, sinta todo o processo, e o deixe seguir seu curso. Às vezes, não podemos contra a morte. 

Pode ser que estejamos resistindo ao fluxo dos acontecimentos, porque acreditamos que o nosso jeito é o melhor, o mais adequado para nós, aliás, para todos. Só que o melhor da vida é a Vida. E essa surpresa é maravilhosa se soubermos dizer sim ao que vem, como vem e mesmo quando não vem.

Perseverar ainda é importante, mas teimosia nos desgasta. Há momentos que pedem a nossa desistência. Claro que precisamos estar alertas para nossas desculpas internas frente aos estímulos. Sabe aquele diálogo interno, nossa conversinha furada que martela a cabeça querendo nos autojustificar? O ponto aqui é outro. É nos desapegar da ilusão de que estamos sempre certos e sair da birra, do esforço sem sentido pelo simples desejo de vencer, a qualquer custo, em geral, quando nem sabemos o porquê. 

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

De Peito Aberto


Sábado à noite, voltando da casa de uma amiga, avistei a moça na esquina. Na rua estreita, os carros voavam parando apenas no semáforo mais à frente. Não sei se era cis ou trans. Reparei apenas que vestia short jeans bem curto, mais nada. Eram 18 horas, hora do Angelus

A moça estava ali, de peito à mostra, escancarada, esperando a carona da vida. Foi um susto e logo depois aquele corpo já se perdia na paisagem urbana, entre faróis, buzinas e paralelepípedos. Registrei, mas não vi, como tantas outras situações que correm pelas nossas janelas.

Lembrei de “Corra Lola, Corra”, filme alemão de 1998 no qual a protagonista corria contra o tempo para solucionar um problema do namorado. Na película, diferentes escolhas levavam a distintos desfechos. No real, várias narrativas cabiam ali, na esquina com a moça. Mas o desfecho, não vou saber. O trânsito seguiu, as horas também.

Será que a moça veio vestida (de onde quer que tenha vindo), tirou a blusa no ponto e recolocaria quando alguém a chamasse para uma volta? Ou já veio seminua, bem ao estilo “hoje vou assim!”? Estaria sempre naquela parada e no dado momento resolveu inovar? Corta.

No meio do caminho a veste rasgou, então seguiu de alma presa com o busto livre. Ou quem sabe, esperando na esquina, concluiu que as horas passavam e nada acontecia, tirou a roupa como quem arregaça as mangas para a labuta. “Faço o que for preciso!”. Algumas possibilidades latentes. Corre Lola, corre. 

Os braços estendidos na lateral, bem rente ao corpo, demonstravam uma inércia corajosa, uma certa rendição de espírito, um desalento. Uma alma que teimava em se esconder, apesar da nudez imposta. Qual corpo cabia ali? O que se mostrava não era o que eu via, embora exposto era uma recusa. Pensei sobre a decisão de retirada da vestimenta e o motivo que a levaria a colocar a blusa de volta.

A cena foi ficando para trás, junto com o corpo das 18h de um sábado de agosto. O estranhamento não. Era noitinha e os faróis cortavam os caminhos nervosos buscando algum lugar, enquanto a vida da moça seguia rumos (des)conhecidos.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Da Série, Pessoas

Confesso, tenho um certo nervoso por pessoas que se balançam. Você pode estar no consultório médico, ou numa fila de padaria, não há lugar definido. As pernas (na maioria dos casos), ou os braços do fulano teimam em se agitar num movimento frenético e ininterrupto. A criatura vai engolindo tudo ao redor como uma pororoca. E é batata! Sobe uma falta de ar, falta de espaço, falta de calma. Começo a pensar o que ocorreria se a pessoa simplesmente parasse com aquele pingue-pongue de membros. Será que entraria em curto-circuito? Ou são as ideias escorrendo pelas pernas porque não cabem no cérebro? Juro, não sei o que se passa com esse frenesi, mas o gasto calórico deve ser grande.

Da mesma série, me intrigam as pessoas barulhentas. Seja pela altura da voz (talvez achem que são as únicas no espaço), ou pelo modo descompromissado com que jogam as coisas por aí - chaves, pratos, panelas, amigos. O som ecoa cômodos adentro, tilinta por horas nos nervos. A pessoa não se importa se aquilo te dá um susto, se pode dar medo (vai que é uma prévia de um ataque). Não interessa! Você e sua santa concentração que vão para o beleléu!

Outra noite estava eu na pizzaria sem conseguir formular o pedido, até que percebi o porquê. A cinco mesas dali estava um palestrante a dar aulas sobre administração básica. “O papel do administrador é organizar as tarefas...”, discursava em alto nível. Às companhias restava ouvir o monólogo mexendo no celular. A voz podia pelo menos dar uma colher de chá, criar pausas, momentos de diálogo. Mas não! Esse povo não sabe o que é flexão de tom, muito menos de grau. E naquele plural só cabia a palavra de um.

Existe ainda outra categoria: as pessoas avoadas. Uma graça! São relapsas, mas divertidas ao levar a vida como merece, na leveza e na confiança. Tenho uma tia e uma irmã assim. Duas mulheres que sabem tirar sarro das situações, rir das graças alheias e das próprias. Essas caem no gosto popular. Com o espírito bon vivant, já protagonizaram vários episódios de comédia da vida privada. E seguem assim, indomáveis e eternamente jovens.

O que dizer das pessoas que se estralam (será que você é dessas?). São mestres em chacoalhar seguidas vezes os pobres dedos, juntas, pescoço, que algum dia devem implorar por sossego e folga. “Treck.” É como se o corpo todo fosse feito de molas necessitando minuto a minuto de checagens. “Só mais uma conferida, treck, treck, treeeeeck”. Quase a tal música de uma certa metralhadora. “Tráaaaaa”. Eu me pergunto como esses entroncamentos sobrevivem. “Tráaaaaa”.

Poderíamos elencar aqui inúmeros tipos, os seres que fungam e espirram sob o humor dos ventos (sabe aquele barulho que se faz coçando a garganta e o ouvido?), os que vivem quebrando e derrubando os objetos (os eletrodomésticos são fãs). Têm os resolutos que acodem a família, amigos e saem tornando o mundo mais fácil. Com essa tribo não tem tempo ruim. Faço menção honrosa aos seres verborrágicos, que num só fôlego disparam três parágrafos, enquanto você ainda nem deglutiu o primeiro. No descompasso, cito os que não conseguem desencadear um raciocínio lógico. Passa uma formiga, cai uma folha, ih! Já se perderam entre os bugalhos, clamando por sensatez.  

E as pessoas que analisam? Devo ser dessas! Podem ser consideradas até ranzinzas, as chatinhas que sempre arranjam lógica para tudo. Mas vou logo avisando, transitar por aqui não é nada fácil. A objetividade perturba o juízo e cobra uma dívida alta em justificar os acontecimentos, mesmo quando o especial da vida ocorre sem explicação. Em paralelo vivem as metódicas, aquelas fanáticas por organização. Conheço uma garota acolá que só usa cosméticos, roupas e adereços conforme o dia da semana. “Qual perfume hoje? O da quinta-feira, por favor.” Nem pensar em fugir do roteiro! De incontrolável já basta a vida.

Pessoas são mesmo fascinantes. Existem outros tantos tipos a perder de vista, e duvido que nos enquadremos em apenas uma dessas categorias. Somos múltiplos em nossas loucuras diárias, aonde a gente vai se encaixando nas brechas, para fazer dar certo esse dia a dia cheio de pessoas e manias. 

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Cercados pelo que nos faz feliz


O famoso livro de Marie Kondo - “A Mágica da arrumação – A arte japonesa de colocar ordem na sua casa e na sua vida.” - já vendeu mais de dois milhões de exemplares no mundo. Um best seller com muito a nos ensinar sobre os objetos e as pessoas. Para a autora japonesa, quando se põe ordem na casa organizam-se também nossas questões e nosso passado. Entre as consequências positivas desta arrumação estão o aumento da capacidade de distinguir o que é essencial do que é inútil, além de trazer mais simplicidade e alegria para a vida. Afinal, Marie sugere que, antes de descartar ou guardar um objeto, nos perguntemos se isto nos traz alegria. A ideia proposta é a de que estejamos cercados apenas pelo que nos faz feliz.

Sou aficionada por organização, acredito que cada coisa tem o seu lugar. Assim como creio que uma casa limpa atrai a prosperidade, as surpresas maravilhosas que a vida traz para cada um de nós, se soubermos esperar e nos preparar para receber. Algumas vezes, é claro, minha mania de organização extrapola a depender do meu (mau) humor. Quanto mais preocupada, mais cri cri fico com a bagunça. Por que no fundo não dou conta de ver no exterior um reflexo da minha confusão de miolos.

Cresci com minha Vó acumulando caixas e mais caixas de presentes, latinhas lindas de biscoito (uma graça!), sacolas plásticas coloridas, potes de margarina. Com o tempo me surpreendi ao ver este traço não somente nas senhorinhas, mas aquilo na época já me dava arrepios e eu tentava contemporizar meu tique com o fato de eu não ser a dona da casa. Ao ler Marie Kondo me identifiquei muito com o convite à simplicidade. “Por que temos mais do que precisamos?”, questiona ela explicando que a origem da bagunça é o excesso.

Marie nos confronta quando diz que temos mais livros não lidos do que antes (e esses são bem mais difíceis de descartar do que os que já lemos), moedinhas espalhadas por toda parte, botões descasados (por via das dúvidas, se um cair), amuletos quebrados (a viagem foi tão inesquecível!), peças e cabos eletrônicos sem utilidade e caixas de fotos e cartinhas de ex (que ninguém descubra!). Segundo a japonesa, a relação que temos com os pertences se enquadra em três categorias: apego ao passado, desejo de estabilidade no futuro ou uma combinação de ambos. Trata-se, portanto, de passado e de futuro, nunca do presente, do aqui e agora. Quem nunca ouviu a clássica frase “Um dia posso precisar.”. Balela, isso também é desculpa. Somos nós mirando o futuro sem perceber o presente de cada dia.

Outro exercício que a autora nos propõe, além da arte do desapego, é expressar gratidão e respeito pelos objetos. “Agradeço por ter me aquecido o dia inteiro.”, podemos dizer às roupas de trabalho. “Agradeço por ter me embelezado.”, quando nos dirigimos aos acessórios. Concordo que gratidão gera uma onda energética positiva, e por que não sermos gratos também aos nossos objetos pelo papel que desempenham em nossa rotina? Não custa tentar! Agradeço então ao computador por levar minha de sopa de palavras pela rede.

A obra nos leva a refletir sobre simplicidade, gratidão, desapego e principalmente sobre o que faz sentido e nos dá alegria neste momento em nossas vidas. Neste processo, acabo por estender a ponderação também às pessoas. Se pararmos para avaliar nosso precioso espaço interno, podemos nos perguntar de que adianta o desgaste com tantos mal entendidos e aporrinhações envolvendo determinadas criaturas. “Por que mantemos esta relação até aqui?!”, “Por que temos passado por essa ou aquela situação, para guardar o que?!”. A resposta é rápida: “Ah, em nome dos velhos tempos.”, “Ah, porque sim!”. Mas o “por que sim”, já diriam até as crianças, não é resposta que convença.

Percebo que estarmos rodeados do que nos traz alegria vai mais além e inclui também estar em um ambiente de belas parcerias, de leveza, de prazer, de boas trocas. E se estivermos gastando nossa energia com as pessoas erradas? Já pensou o desperdício?! Pode ser extremamente difícil (ou libertador) quando cair a ficha de que o que “sempre foi” tornou-se “não é mais”. É, a Existência prega essas peças.

Segundo Marie, a vida começa de verdade depois que se põe a casa em ordem. Pode ser então que esta “casa” esteja ainda uma bagunça, mesmo com todos os objetos no seu devido lugar.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

De coração para coração


Mais de vinte mil pessoas reunidas em um evento dedicado às mulheres. Imagine que alguns estudos indicam que o feminino fala, em média, vinte mil palavras por dia, em comparação com sete mil pronunciadas pelos homens. Agora calcule a proporção do que ouvi durante quatro dias de encontro. Meu Deus! Senhoras de várias idades no frenesi de palavras, brindes, oficinas, palestras e brincadeiras, e filas e mais filas. Reunidas de “coração para coração”, tema do evento. Confesso que chegando ao local pude perceber claramente qual era o público-alvo, e não era eu. Mas ali estava na missão de ver ao vivo minha diva, a escritora gaúcha Martha Medeiros. Iria até o fim.

Por diversos momentos percebi a grandiosidade da estrutura (já trabalhei com eventos e soube que aquele levou dez dias de montagem!), o suor e a quantidade da equipe envolvida (pessoas de amarelo em todo lugar, com a blusa “Posso ajudar?”), diversos estandes de fornecedores movimentados por uma grande logística e o cuidado dos profissionais com aquelas senhorinhas - “Me dê sua mão.”, “Cuidado com a escada rolante.”, “Quer uma água?”, “Onde está sua amiga?”.

Mergulhando naquele mar de mulheres, pude me encantar com o brilho das amizades e da vivacidade que dá banho em muitas das novinhas por aí. Dançavam, pulavam, se divertiam, num expediente de dez horas contínuas. Ufa! Haja fôlego! Meus pés doíam, então decidi ir somente à tarde para shows e palestras. Mas elas, ah! Elas aguardavam desde cedo a abertura dos portões.

Em um dado momento, já no último dia, ocorreu que um cisco entrou no meu olho. Entre 6.700 histórias escritas para concorrer ao prêmio “A Estrela é Você” (que daria banho de beleza e de loja à ganhadora), dez mulheres foram selecionadas para ter um resumo da vida narrada ali no palco para todos ouvirem. Posso dizer no mínimo corajosas. Expor-se dessa maneira não é para principiantes. Claro que não me contive, fui às lágrimas naquela emoção de reconfirmar o quanto o ser humano é interessante e as mulheres personagens de livros e da vida real. Maravilhei-me sobre o quanto podemos nos reinventar.

Uma das senhoras confessou, deixou a vida de freira para casar com um rapaz que insistente e pacientemente roubou seu coração, até então dedicado ao convento. A plateia riu e eu visualizei a persistência daquele garoto ao frequentar as missas, tentar uma conversa ou duas. Tempo ritmado por outras expectativas. Dosado pela minutagem dos sábios.

Outra vida falava de uma mulher forte que ajuda a várias instituições de apoio a doentes, quando de repente ela mesma se descobriu diagnosticada com a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Aquela tal doença que mobilizou famosos e anônimos nas redes sociais com a "brincadeira" do balde de gelo (lembra?). Já era o destino ensinando àquela senhora como cuidar e deixar ser cuidada. Sei que aceitar ajuda não é tão simples como imaginamos. Paradoxalmente, às vezes é mais seguro olhar para o outro e dizer “vou te ajudar”. Deixar a vulnerabilidade aflorar é um ato de bravura.

E voltar a estudar após os 60 anos? É uma resiliência para poucos. E eis que umas das histórias falava sobre os desafios entre as gerações e o preconceito dentro de sala de aula. Enfrentar essa jornada requer presença de espírito. A sexagenária contou que, não só deu a volta por cima, como acabou reconhecida pelos demais alunos da turma.

E o que dizer de uma mãe que acaba de dar à luz, quando outra mãe deixa os filhos órfãos?! O que fez a sobrevivente? Amamentou os filhos da outra, “de coração para coração”. Teve ainda a que driblou as dificuldades financeiras e hoje é formada com louvor. Outra senhora narrou o amor fraterno cultivado por uma amiga de infância, “Sou Antônia, ela também.”, dizia dedicando as frases à amiga. Uma das que me puxou mais a emoção foi a senhora que nos confessou o dia a dia sem o filho. Saudosa e confiante nos planos maiores do amor, nos contou como percebeu que os laços seguem além, e que o filho estaria ali, presente no evento torcendo por ela.

Dez caminhos diferentes que a vida tomou, mostrando o quanto as mulheres podem ser vitoriosas. E com mais de 70% dos votos, a ganhadora foi morar aos quatorze anos com outra família que não a sua, para cuidar dos filhos de um certo casal. É a “mãe preta”, hoje “Vó preta” como se autointitula. Ela se disse muito amada há mais de vinte anos.

A história premiada me lembrou as milhares de adolescentes-crianças, praticamente criadas enquanto trabalham. Não sei mais detalhes da vida da vencedora, mas sei das meninas que vêm do interior procurando oportunidade, amor, trabalho e realização. Muitas não vingam, inúmeras engravidam ainda jovens, poucas seguem os próprios sonhos, e apenas algumas são estrelas da própria história. Uma espécie de concurso “natural” da vida.


terça-feira, 2 de agosto de 2016

Pérolas de madeira


Saber ensinar é para poucos e aprender apenas olhando, somente para alguns. A maioria de nós assimila com a mão na massa, na madeira, no cimento, na labuta, ou seja, na prática. Além da teoria, que é parte do processo, vamos errando e aprimorando enquanto o labor acontece. Hoje podemos nos ver melhores profissionais do que passos atrás. É o normal, é o que se espera. Mas para o marceneiro lá de casa não.

"Uma coisa que não aceito é burrice!", solta a pérola se referindo ao ajudante, que também retruca: "Ele só faz me chamar de burro, mas não me ensina como fazer!". O marceneiro repreende impiedoso: "Ensinar?! Ninguém nunca me ensinou nada, aprendi olhando. Não aprendi a errar. Se eu erro é porque alguém me atrapalhou com certeza!". Ouvi o diálogo do quarto ao lado, enquanto trabalhava. “Não é possível!”, pensei, “Tenho que escrever sobre isso, porque além de pitoresco é no mínimo surreal.”.

As frases categóricas vieram do senhor que não cumpriu nenhum dos prazos ensaiados, adiou a entrega diversas vezes, prometeu vir, mas na realidade não deu o ar da graça alguns dias, e quando eu liguei para receber satisfações, disse na cara de carvalho que estava doente. No fundo, considero que deve ter pego outro serviço e resolveu fazer tudo ao mesmo tempo e agora. Nada com perfeição, é claro. Ao modelo de profissional não interessou se eu me programei para esperá-lo, se adiei compromissos, se eu contava almoçar na mesa nova há meses, se eu queria organizar as roupas espalhadas pela casa no novo guarda-roupa. De fato, ele não aprendeu a errar, então eu cliente devo tê-lo atrapalhado.

"Pior coisa do mundo é lidar com gente! Não tenho paciência!", confessa o senhor que precisa de ajudantes para completar seu trabalho. Fala para mim com a expressão de peroba, sem empatia alguma com os pobres mortais que trabalham para que ele, o patrão, entregue os móveis em algum ponto do tempo e do espaço. Eu, sem jeito, olhei incrédula imaginando que aquele homem adoraria ser uma ilha, ou se ache uma Cariniana Ianeirensis, da família das Lecythidaceae. Ou seja, um jequitibá, árvore típica da Mata Atlântica, com risco de extinção. Não, pensando bem talvez se considere um Pilocarpus Trachylophus, isto é um jaborandi-do-Ceará, árvore do cerrado ameaçada de desaparecer.

Para mim, ele está mais para uma Cyperus Rotundus, mais conhecida como tiririca, espécie de planta que aparece em solos muito ácidos e prejudica o desenvolvimento de outra vegetação. Fiquei imaginando o que esse marceneiro passou para construir tais tipos de pensamentos. Será que teve pais ausentes? Começou a trabalhar ainda criança? Apanhou até aprender e hoje diz que ninguém lhe ensinou nada? Como se tornou essa “erva daninha”? Divaguei nas possibilidades, mas não ousei investigar.

"Hoje não tem mais mão de obra! O povo que tá aí só quer saber de celular.", argumentou quando eu disse que ele fez jus à regra de nenhum marceneiro entregar o serviço no prazo. "Ninguém!", defendeu-se, "Ninguém que trabalha com serviço desse tipo entrega no prazo. Tudo atrasa.", concluiu enfático.

Mal a criatura saiu e já soltou uma peça da porta do guarda-roupa. Pelo visto, além de pontualidade, certamente excelência não é o seu forte. Também rebocou algumas lascas nas portas com corretivo (confiram uma outra utilidade para o produto), na tentativa de maquiar as imperfeições do transporte e lançar uma técnica moderna.

A reforma dos móveis até ficou boa, deu outro astral ao quarto do casal, é verdade. Respiramos diferente, como quem acabou de mudar para a casa nova. Custoso foi o processo, a expectativa e o trato com o tal marceneiro, que acredita que ensinar é para os fracos.