quarta-feira, 13 de maio de 2009

Travessia

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas,
que já têm a forma do nosso corpo,
e esquecer os nossos caminhos,
que nos levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia...
e, se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
(Fernando Teixeira de Andrade)

Estou no momento da travessia. Bem no meio daquela ponte de madeira que se move para os lados. Bem naquela hora que se olha para baixo e dá um medo mortal. Medo de cair no abismo e virar história.

Estou no meio da ponte, quando se olha para trás e de acordo com o caminho percorrido, não se sabe qual a melhor estratégia: voltar ou continuar apesar de todos os riscos.

Parece cena de Indiana Jones e é assim mesmo que tenho me sentido desde semana passada. Na corda bamba. Ainda não consegui trabalho, as finanças acabando e a crença no projeto começa a falhar.

Pela primeira vez, desde que cheguei em Minas, começo a duvidar de meus propósitos por aqui. O mercado está mais fechado do que imaginei e estou sem fôlego e perspectivas aparentes. Além disso, cheguei num nível financeiro que nunca beirei antes. Ou seja, num limite desconhecido e apavorante.

Como disse Fernando Pessoa, para mim chegou o tempo de abandonar as roupas usadas que já têm a forma do meu corpo. Foi por isso que vim parar em Minas, embora já me perca nas dúvidas e porquês. Sinto-me dia-a-dia testando a fé que tenho em mim. A cada manhã conheço mais uma camada de Cristina. Como diz uma amiga, é um processo de desnudamento que me leva a total vulnerabilidade.

Sinto medo, vergonha e muita frustração. Paciência e ansiedade concorrem. O bom senso e amigos procuram me tranqüilizar. Mas sabe quando a gente elabora um plano, uma estratégia, e vê todo o arsenal se esvaziando?! Primeiro os peões, depois os cavalos e agora tento salvar meu rei.

Mas será que esse rei está na minha barriga ou no meu coração? Já não sei mais. Desculpem o desabafo, mas está difícil por aqui.

Para mim, é o momento de rever conceitos. Já estou nesse caminho há um tempo e agora é como se tivesse chegado numa encruzilhada. Eu que sou uma pessoa muito reflexiva, característica que começo a desgostar, tenho olhado para mim como aquela boneca bem vestida, que freqüentou bons colégios, foi excelente aluna, fez faculdade, vários cursos e agora está só diante de si com uma bagagem que não serve para nada. Pareço escutar minha mãe desdenhando de mim, falando essas coisas e me questionando pra que eu fiz tudo isso se ganhava ume merreca. Vejo seu sorriso zombando do meu esforço em buscar o sucesso.

Em conceito, tenho toda a consciência de que vão dizer: “é uma passagem”, “tenha paciência”, “é questão de tempo”, “você está sob grande aprendizado”. Também imagino que não deve ser interessante aos leitores ler esse tipo de texto. Cada um segue com suas próprias pedras. A questão é que no momento não consigo ser outra coisa além dessa realidade. Estou perdendo a fé em mim.

Certamente você pode ter passado por isso um dia na sua vida. E pelo visto, hoje está aí, seguindo mesmo com algum vento contrário. Sinto admiração por isso. Ontem mesmo desejei ser outra pessoa, ser como meus amigos que são muito mais estáveis e têm mais mérito que eu. Eles dirão que o gramado do vizinho é sempre mais verde. Eu sei disso, mas confesso que desejei ser como eles.

Eu não quero piedade, nem pessoas me dizendo que sou ótima. Eu quero solução. Quero um trabalho, quero ter dinheiro para me bancar e quero seguir com minha pós aqui. Estou rezando todos os dias pedindo por ter feito as escolhas certas. Porque fico pensando que sou doida em ter vindo para Minas e ficar me testando nesse limite. Isso só pode ser coisa de gente doida mesmo. Eu assumo!

Também não quero ter medo de voltar. No momento voltar significa para mim um fracasso. Sei que na volta encontrarei as portas abertas. Mas não sei como estarei. Quem serei eu nessa volta.

Se agora me juntei à massa sem trabalho, imagino o que esse contingente sente todos os dias ao por os pés para fora da cama e ver que tudo continua sem perspectiva. E deve ser muita gente capaz. Eu me pergunto o que fazer com todo esse conhecimento que guardamos, com toda essa inteligência, com essa promessa de um futuro bom.

Se alguém souber que me diga, porque estou em plena travessia em busca do próximo passo. Encerro aqui com um texto de Nelson Mandela que recebi de um amigo e me parece sugerir algo.


“O nosso maior medo, não é sermos inadequados.
O nosso maior medo é ter mais poder do que podemos medir.
É a nossa luz que nos assusta e não a nossa escuridão.
Perguntamos a nós mesmos: quem somos nós para sermos brilhantes, talentosos e fabulosos?
Na verdade, QUEM É VOCÊ PARA NÃO SER?
Você é uma criança de Deus.
Fingir que é pequeno não ajuda o mundo.
Não há nada de inspirador, em se conter, para que as pessoas não se sintam inseguras perto de você.
Estamos todos destinados a brilhar, como crianças.
Nascemos para manifestar a glória de Deus dentro de nós.
Que não vive só em alguns, vive em todos nós.
Quando deixamos a nossa própria luz brilhar, inconscientemente permitimos que outras pessoas também o façam.
Quando nos livramos do medo, a nossa presença automaticamente liberta os outros também.”

terça-feira, 5 de maio de 2009

Vivendo Duas Vezes

Semana passada comecei a ler um livro muito interessante indicado por uma amiga: “Escrevendo com a Alma” de Natalie Goldberg. Essa leitura veio em boa hora, pois está casada com o meu momento de escrever.

A autora, adepta do zen-budismo há trinta anos, relaciona continuamente o ato da escrita com a meditação. Prática essa que também me cativa. Segundo Natalie “escrever significa lidar com toda a sua vida”, com esse material interno rico em experiências. Escrever significa entrar em contato com as primeiras impressões sobre as coisas, aquelas impressões cheias de frescor e inspiração que ainda não foram tolhidas pelo nosso ego. Essas idéias iniciais detêm uma energia extraordinária. São cheias de vida, verdade e sem julgamento. É quando estamos mais perto da essência das coisas.

Natalie revela ainda que os escritores vivem duas vezes, porque param, olham de novo para sua vida, repensam-na, são meio bobos. É assim que me sinto a cada texto. Toda a vida passa em flash até encontrar aquele item da prateleira que tem o ingrediente o qual preciso.

Falando em primeiras impressões, lembro claramente de quando ouvi Enya pela primeira vez. Foi um momento mágico que guardo até hoje. Acordei de manhã para caminhar com meu grande amigo. Fazíamos isso de forma rotineira, na busca de equilibrar corpo e saúde. Após nosso percurso tradicional, passamos por sua casa e entramos para acalmar a sede. Sentamos na sala para as nossas conversas profundas e amenas, as quais costumávamos ter a perder de vista as horas. Tenho muita saudade desse tempo. Refletíamos sobre a vida com leveza e ânimo. Era divertido e trazia cumplicidade.

Então, meu amigo disse que ia me mostrar um CD que acabara de comprar e que certamente eu gostaria muito. Falou ainda que a música era coisa de outro mundo. Bastaria eu escutar. Segui tranqüila à espera daquele alumbramento. Não podia crer que era essa cocada toda que ele falava, pois em nossa juventude tínhamos o excesso no encalço. Sorridente, vi-o apertar o play.

Aos primeiros sons lembro que fui paralisando. Aquilo era diferente de tudo que já tinha ouvido até ali. A música era serena, vasta e tocante. Nossos olhares se cruzaram e ele entendeu que eu também estava chocada. Pensei em falar, mas palavras diminuiriam aquela primeira vez. Larguei-me na poltrona e fechei os olhos. Permaneci imóvel para não afetar nenhum detalhe. A música entrava por todos os poros, gerando uma energia gostosa de satisfação, êxtase e tranqüilidade. Senti meu corpo expandir e o mundo ficar mais possível e simples. Meu coração acelerou com o aumento do ritmo e parecia que não ia mais caber no meu peito. O som varria toda a casa, o quarteirão, o bairro, alcançava toda a cidade. Virava um cogumelo de luz, juntando todas as coisas em ondas de calor e vento. Senti vontade de chorar porque era algo novo, lindo e ao alcance.

Ouvimos uma, duas, três, quatro músicas. Eu estava estupefata! Como podia existir no mundo tal melodia?! Éramos tão novos e aquelas músicas aquietavam nossa alma urgente. Eu me arrepiava e os olhos enchiam d’água. Calei porque a certeza do que ouvia era mais forte que qualquer argumento. Eu e meu amigo participamos juntos daquela descoberta perfeita. Havia sintonia e liberdade para sentir. Enxerguei-me um pouco mais pura naquele momento. A partir dali passei a admirar a mulher, quase lenda, meio bruxa, um mistério, chamada Enya.


Guardo viva essa lembrança porque, além de prazerosa, faz reviver a disponibilidade em abrir-me para o novo. Lembro-me da primeira vez que provei pudim, senti estranheza e sabor. Recordo do meu primeiro velocípede, da primeira vez que andei de trem, do meu primeiro animal de estimação (era um pinto, acredita!), do meu primeiro beijo que causou alvoroço nos amigos.

As primeiras impressões são cheias de vida, verdade e sem julgamento. É quando estamos mais perto da essência das coisas. Parece que um sino toca dentro de mim, uma energia vibra e faz cócegas. Dá uma vontade louca de sair correndo, de braços abertos, tentando abarcar o ar que passa. Nessa hora só existe esse momento que é imenso, não cabe em letras nem cores, é iluminado e único, e me faz ser mais gente de novo.