quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

O Ser Feminino


O discurso de Madonna, durante a premiação na qual foi eleita pela Billboard como “Mulher do Ano na Música em 2016”, trouxe confissões e empoderamento. A cantora abordou situações íntimas e os desafios da carreira como pop star e mulher. Enquanto respirava profundamente em algumas memórias, seu olhar parecia revisitar o passado. Imagino que passou um filme em sua cabeça naqueles dez minutos de discurso. Entre as mensagens pungentes, declarou: “Na vida, não há segurança de verdade, exceto crer em si mesmo”.

Além das palavras precisas, me chamaram atenção as pausas de Madonna. Aqueles breves segundos em que ela respira, sente, olha cortando o ar, e retoma a fala. Vejo a plateia prender o fôlego. Um silêncio palpável, emocionado, constrangedor.

Quando se referiu aos apelidos que recebeu - “vadia”, “bruxa”, “pactuante com o Diabo” - confessou ter ficado paralisada. “Levou um tempo para que eu me recompusesse e continuasse com minha vida criativa; para que eu continuasse com minha vida”. Com a voz embargada, explicou ter encontrado conforto na poesia e na música.

Mais uma pausa. Madonna respira, olha para baixo e desabafa: “Eu me lembro de desejar ter um modelo feminino a quem eu pudesse procurar por apoio”. Outra grande pausa, agora maior, seguida de uma respiração curta e forte.

Naquele instante pensei sobre os modelos femininos que recebemos ao longo da vida – mães, professoras, tias, artistas como a própria Madonna, amigas, vizinhas, e até desconhecidas. Pensei nas ausências. Recordei o quanto desesperadamente nós mulheres, em fases distintas, precisamos de um apoio, de uma palavra amiga, de uma referência, seja de sucesso, de confiança, projetando o feminino de fora para dentro, para que possamos acessar nosso próprio potencial, sem culpa.

Naquela pausa senti a solidão de Madonna, e de tantas outras mulheres que buscam uma direção fora para ter força e coragem de se ver por dentro. O quanto ainda meninas queremos o olhar gentil nos apontando o caminho, nos dizendo que tudo bem em sermos nós mesmas, que há beleza e perfeição em nós. Que ter intuição não é fraqueza e se emocionar é sinal de que estamos vivas, e principalmente, que não precisamos embrutecer para ocupar nosso lugar no mundo, apesar dos infindáveis desafios que virão. Apenas um sopro de gentileza sobre nossa face pueril.

Sem ter a dimensão exata (acho que nunca se terá) do papel que nós mulheres desempenhamos umas para as outras, perdemos oportunidades de fortalecer o feminino. O ser mulher que há em nós nem sempre saúda o feminino que há no outro. Nossas pequenas brigas e competições enfraquecem nosso caminho, quando poderíamos nos olhar com mais compaixão e delicadeza. E haverá ainda tantas portas a atravessar.

“O que eu posso dizer sobre ser mulher?”, questionou Madonna na cerimônia. “Não há regras, se você é um homem. Se você é uma mulher, você precisa jogar o jogo”. Uma realidade do mundo pós-moderno, com ou sem estrelas. E Madonna complementou: “Envelhecer é um pecado. Você será criticada, você será a vilã”.

De Madonna às mulheres de todos os dias, me pergunto se não precisamos de mais referências femininas, neste mundo de avanço masculino. Lembro um comentário outro dia, em um desses vídeos que passam pelas redes sociais. Se você não vê uma mulher em posições de destaque, de sucesso, à frente de algo importante, é como se confirmasse internamente a crença de que ela não é capaz.

Como inspiração para 2017, deixo aqui a mensagem final de Madonna, eleita a “Mulher do Ano da Música em 2016”: “Enquanto mulheres, devemos começar a apreciar nosso próprio valor e o valor de cada uma. Busquem uma mulher forte para ser sua amiga, para se alinhar com ela, aprender com ela, para ser inspirada, para colaborar, para apoiar, para ser iluminada.”


Texto originalmente publicado na minha coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas

sábado, 17 de dezembro de 2016

Amor de Neta


Hoje faz dez anos que minha Vó materna se foi. Dona Altina. Confesso que a saudade não diminuiu com o tempo, que sempre me mostra a força desta mulher para além da vida. Tenho experimentado bonanças pela generosidade da minha amada vozinha, quando as pessoas relatam que fazem algo por mim como uma forma de agradecer o que tempos atrás minha Vó fez por elas. É mais uma prova de que Dona Altina continua a me abençoar.

De todas as coisas de quem se vai, entre as que ficam, costumo dizer que o cheiro é uma das mais marcantes. Em diversas ocasiões, sinto seu perfume vindo como uma leve brisa me arejando. Floratta, uma fragrância com a qual se banhava e que hoje personifica sua presença ao meu lado dizendo “Tenha calma minha filha, eu estou aqui.”. Nessas horas, respiro profundo, fecho os olhos e agradeço o sinal, porque sei que ela está a me proteger e guiar.

Dona Altina era minha base de vida. Foi pai, mãe, avó, babá, médica, professora e, nos seus anos finais, minha filha. Período que a vida me desafiou e me convocou a ser forte, a amadurecer. Tirei pontos, apliquei injeção, regulei oxigênio, fiz comida enteral, cuidei de escaras e mais um monte de testes que quem passou por este caminho conhece bem.

Meu coração muitas vezes queria trocar de lugar com minha Vó, para que o sofrimento dela cessasse. Mas eu não tinha esse poder. Foi penoso e mortificante acompanhá-la em cirurgias, recuperação, quedas, transfusões, balão de oxigênio, sonda para se alimentar e finalmente o Alzheimer. Nome estranho que eu, aos vinte e poucos anos de idade, mal compreendia.

Eu não sabia o que sei hoje, não entendia que a tal doença tem fases, que o corpo vai parando, que o olhar vai ficando opaco e a memória dorme presa na infância. Me lembro de episódios (já eram sinais) que nos faziam rir, mas já era doloroso para ela perder a rédea dos dias. Passava horas tentando lembrar o nome de alguma celebridade, não sabia o que tinha comido mais cedo, perdia a chave do guarda-roupa de forma cotidiana e dizia que tinham roubado seu dinheiro, quando ela mesma havia escondido tão bem, só não lembrava onde. “Achei, minha filha, mas olha!”.

Um dia, quando ela ainda falava de forma mais clara, me perguntou como seria morrer, porque tinha medo durante as agonias matinais. Eu engoli seco e tentei passar uma tranquilidade, mesmo que por dentro doesse. Expliquei que seria uma transição e que sua mãe, filho e irmãos já falecidos estariam ali, apoiando sua travessia. Falei que ela veria luz e não teria medo. Sinto que acreditava.

Lembro dos grandes aprendizados que tivemos juntas, como abraçar e dizer um simples eu te amo. Uma novidade para nós duas, que não recebemos tais ensinamentos de nossas mães. A vida nos confrontava com uma oportunidade – expressar o amor. Afinal, só tínhamos uma à outra, na rotina de colégio, casa, hospital, casa, colégio.

Hoje eu escrevo esse texto Vó como mais uma forma de expressar esse amor e te agradecer por tudo, mesmo as horas de silêncio e aquele olhar sério de quem não aprovava minha rebeldia adolescente. Eu brincava para te dar mais alegria, colocava música para animar o ambiente e celebrava com um almoço em família seu aniversário, para te dizer que a vida deve ser comemorada como uma vitória. Sempre que atravessamos o dia, mais um ano, nós vencemos.

Agora vejo seu santinho, que guardo no Evangelho, indicando 17.12.2006, ilustrado com a foto 3x4 que tiramos juntas. Lembra aquela tarde, quando vestiu sua roupa favorita e fomos a Abafilm? Nunca pensei que seria sua imagem de santinho e que o traje iria com a senhora na estrutura de madeira.

Recordo sempre do nosso último momento, no hospital, quando partiu na hora do Angelus. Enquanto minha amiga lia o Evangelho, a senhora deu os três suspiros da velha música, e eu parecia vê-la sendo recebida por pessoas queridas, sendo amparada após sua longa jornada de dedicação aos outros aqui na terra.

Recordo mais: suas expressões típicas - “cara lisa”, “ispicial”, “qualistria”; sua marca registrada - o doce de mamão, o bolo Luís Felipe favorito, o sorvete preferido sabor napolitano e a banana assada com canela, que tanto adorava. Ah Vó, “Escolinha do Professor Raimundo” está sendo reprisada, aliás, está com novos atores. Quem sabe a senhora encontra o Chico Anysio por aí, que tanto a alegrava por aqui! Ele também já se foi. De repente, batem um papo camarada e a senhora solta a frase que tanto gosto - “Ow beleza!”.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Outras vestes


“Você sempre faz o que é esperado de você?” Ouvi esse questionamento em um sábado à tarde, no curso de mídias sociais. Fiquei um tempo a refletir, mas minha resposta veio rápida. – “Sim!” – conversei mentalmente. “Que pena!”. Foi o comentário do instrutor. “Onde está o elemento surpresa na sua vida?”. Era depois do almoço e eu levaria dali bem mais do que aulas sobre facebook e instagram.

E seu eu pudesse ser outra dentro de mim? Há espaço para mais? Fiquei a semana martelando a ideia e me lembrei da dinâmica do sapato. Conhece? Um exercício que nos força a trocar os sapatos com alguém para buscarmos a empatia por aquela luta, a vida que não a nossa. Tenho pensado sobre essa proposta - Experimentar outros calçados, novas vestes de mim.

Se você é daqueles que, como eu, costuma organizar tudo (inclusive a vida do fulano, às vezes quando ele nem pede), sabe o peso que é ser a juíza; pessoa que coordena, cobra, contemporiza as divergências, faz check lists e procura encaixar as rotinas nos afazeres. Outro dia me chamaram de general. O apelido não é novo. Uma faceta que persiste, apesar dos desapegos da velha estrada. Descaminhos.

Só que a general quer sair de férias. Cansou de ser a memória, a secretária e o despertador dos beltranos. Quer calçar a sandália do rebelde, usar os óculos do louco e ver o mundo de ponta cabeça. Vê se pode! Dizem que é libertador e ninguém morre com isso.

Mas ela sabe que não é fácil deixar de bater o ponto de uma hora para outra, pois tem o hábito de encaixotar os dias, busca praticidade. No afã de organizar, acaba bagunçando tudo por dentro e ecoa um ruído lá fora. Dimensionou errado. O oceano não cabe numa taça.

A general não quer mais louça suja pesando nos ombros, nem se afetar com roupa jogada gritando "me arruma". “Que vá sozinha para o cesto. Essa guerra não me pertence”, avisou completando que precisava de folga.

Dia desses ameaçou pedir as contas. Esbravejou, vejam só. “Que os copos molhados se acumulem, que a mesa receba arranjos, papéis amassados e moedas. Preciso de descanso!”. Deu de ombros e me deixou falando sozinha, enquanto eu teimava em alocar um material na estante.

Desde esse episódio, a vida anda descarrilhada. A general sumiu. Só espero que não apareça de surpresa se eu entrar numa casa bagunçada, ou venha me incomodar pela sujeira dos outros, obcecada com fios de cabelos espalhados pelo chão. “Dos meus pelos cuido eu, o resto que se descabele!”, direi a ela.

Se o prazo não for cumprido, por favor, não conte a general. Fiz o meu melhor e me recuso a adoecer de culpa. Afinal, o trabalho é cooperação, então só pegarei a minha fatia desse bolo. O tempo, precioso, tem me assobiado.

A general passeando e o relógio emudeceu. Agora, pequenos gestos vêm roubando lágrimas. Quanta ousadia! São as delicadezas diárias que tornam a gente mais gente. Uma mensagem surpresa no meio da tarde, pipoca à noite sem motivo, abraço sem planos, um café sem avisar. Há muita poesia a ser apreciada.

O ano vai virar e os meses trazem metas, desafios. Bom sentir esses apuros e sorver a vida aos goles largos de uma sede longa. Para 2017, no entanto, o objetivo é não ter regras. Pretendo dar uma longa licença a general. E se for preciso, quebrarei pratos, para lembrar que dentro a gente é água.

Que possamos nos virar do avesso, se assim for o chamado. Trocar de roupa sempre que oportuno. Dar folga a generais, certinhos, donos da verdade. E trocar de veste, sempre que de novo apertar por dentro.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A vida que queremos ter


Assistindo ao filme “Os Desnorteados”, recebi uma dica valiosa para o próximo ano. O pai do protagonista recomenda: "Filho, escolha a vida que você quer e não a vida que você pode ter". O conselho vem em momento oportuno; dezembro, revisão das metas e a pertinente questão – “Que vida vamos levar em 2017? A que queremos ou a que podemos?”

Vozes, velhas conhecidas despertam das profundezas para nos chacoalhar - "Querer não é poder!". “A vida está muito difícil, se apegue ao que já tem”. “Você não pode ter tudo”. “Melhor um pássaro na mão do que dois voando”. “Deixe de sonhar. Os tempos não estão para brincadeira”. De certo, você tem suas crenças, fulano tem as dele, e assim arrastamos vários fantasmas guiando nossas ações, principalmente nos períodos de mudança. Mas o que diz nossa própria voz?

Não se trata aqui de apelar para a vida inconsequente, cheia de dívidas que prejudica a si e aos outros. Isso é outra história. Pode ser que, assim como “Os Desnorteados”, acreditemos naquela vida dos comerciais de TV, idealizando que o melhor para nós vem apenas com sorrisos e perfeição. Mas os dias têm seus atropelos e podemos rir com eles.

O filme é comédia besteirol, boa para domingo à noite. Mas com humor caricato, ainda consegue refletir questões atuais: desemprego, crise, a grama mais verde do vizinho e sobre vivermos a vida que os outros esperam de nós. Spoiler à vista.

No roteiro, o ator principal encena um jovem espanhol de currículo recheado, mas recém demitido. Cansado da crise em seu país, vê em um comercial de TV a solução de seus problemas – Berlim está cheia de vagas de trabalho. Então, juntamente com outro amigo desempregado, o protagonista decide tentar a vida próspera nas terras alemãs. Lá chegando, além do choque cultural, passa por apuros financeiros.

A trama se desenrola com o jovem espanhol mentindo para seus pais, que acreditam no excelente cargo ocupado pelo filho, gerente em uma grande empresa alemã. Nada novo sob o céu. O personagem vai escolhendo viver uma farsa para salvar os pais da falência, para agradar o próprio ego e também para prestar contas ao que se espera dele - alguém bem sucedido após anos de estudo.

Fácil apontar o dedo para o espanhol, mas o que dizer de nós? Estamos vivendo a vida que queremos ou a que esperam de nós? Assumir a própria verdade requer coragem, exige romper conveniências, confiar no fluxo, que não avisa sobre as tempestades, bonança ou desafios. A vida que nos cabe, não a do cinema, não segue um roteiro definido, não tem ensaios e não permite troca de protagonista. É valendo!

No fazer diário, será que tomamos a vida pelas mãos? Deixamos ir os projetos alheios e nos apropriamos da nossa rota? Recordo uma oração do terapeuta americano, Bob Mandel, que sugere “Deixar ir, Deixar Deus agir”. Bob nos lembra de que algumas corridas não são as nossas, por isso não é preciso corrê-las. Alguns projetos são executados melhor desacelerando e algumas respostas vêm quando esperamos ao invés de forçar uma solução.

Assim como Bob, “eu rezo para saber o que é meu, quando empurrar, quando permitir”. Como o desnorteado do filme, eu espero ter a coragem de buscar a cada dia a vida que eu quero e não me contentar com a vida que eu posso ter. A todos, que tenhamos a ousadia de ir além da vida que escreveram para nós. 

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Voz além do alcance


Nesse tempo de fala rouca, ser ouvida tem sido um desafio para mim. Devido à cirurgia na cabeça, que afetou consideravelmente minha voz, tenho lutado para expressar minhas ideias e ocupar espaços que antes eram automáticos. A limitação atual me faz refletir sobre o quanto estamos de fato disponíveis para ouvir o outro. Tenho vivido histórias interessantes.

Episódio recorrente tem sido desligarem a ligação na minha cara. Eu digo alô e do outro lado da linha pedem que eu fale com mais força, eu me esforço e do lado de lá reclamam: “Senhora, a ligação está baixa, não consigo ouvir”. Alguns tentam mais, outros menos. Eu ligo novamente, desligam. Uma vez pedi ajuda aos universitários, enquanto minhas palavras entalavam no meio da garganta. Tem sido um tempo de persistência e ponderação.

Até me considero uma boa ouvinte, e sem voz, é o que mais tenho praticado. Nem sempre há espaço para interagir no mesmo dinamismo de antes. Eu que era expert em piadinhas e sacadas cults, agora aceno com a cabeça, esboço um sorrisinho e me faço de entendida. Falas mais enérgicas se sobrepõem ao meu fôlego, ambientes maiores somem com a réstia das sílabas e eu escuto ruídos por dentro. É tempo de observar.

Outro dia me disseram: “Fiquei rouca igual a você. Foi horrível, ninguém me escutava, imagino que seja muito ruim mesmo ficar sem voz”. Pois é, bem vindo ao meu novo mundo peculiar, que não consegue cantar um refrão inteiro a plenos pulmões (em inglês é ainda mais cômico) e que se deu conta de que gritar socorro é quase impossível.

O simbolismo dessa castração (como diriam os analistas) me trouxe apreço pela fala. Quando no passado eu evitava me expor, falar em público (embora ainda difícil), agora tudo que almejo é ser ouvida, falar bem alto, mesmo que para uma plateia vazia. Gritar uns palavrões para liberar a tensão.

No percalço de projetar a voz, percebo que exige do outro paciência, atenção e de fato vontade em conversar com uma criatura fanha e sem ar. Às vezes, para esse outro creio ser mais fácil disparar o blá, blá, blá a perder tempo com uma voz soprosa e infantil. Na vida há um fazer urgente.

Brinco que meu tom está romântico, escuto resignada receitinhas para curar a “inflamação na garganta” – casca de romã, mel com própolis, água com sal... “você vai ver que no outro dia recupera rápido” – No fundo, é mais fácil afirmar com a cabeça do que explicar minha condição. “Está certo minha senhora, eu agradeço.”

Tem horas que bate o cansaço e o jeito é voltar para dentro, onde as perguntas preenchem parágrafos e minha voz continua a mesma. Eu ouço meus acordes como se nada tivesse ocorrido. É estranho. A fala que vem de dentro não mudou, só ficou mais barulhento do lado de fora. Ainda prezo o silêncio para organizar as ideias que pipocam. Calar tem seu valor.

Minha produção não diminuiu. Em alguns dias até faço mais do que deveria e vejo que o corpo pede calma, respeito, limite. Sabe quando a cabeça vai mais rápido e o esqueleto ficou passos atrás? É tempo de fazer menos, de dizer não.

Se a voz falha, há que se escutar o corpo e dar ouvidos à alma. Se do lado de fora nos ouvem menos, do lado de dentro ouçamos mais. O tempo pede silêncio, para escutar a voz além do alcance.


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Sintonize sua vibração


A música recomenda “sintonize sua vibração, não há tempo para viver em vão”. Na letra é poesia, mas na prática tenho visto pessoas desperdiçando tempo e energia com o pólo negativo das situações. 

Não sei se você é daqueles que compartilham tragédias, assaltos, mortes, o kit completo do caos. Se faz isso nas redes sociais, nas esquinas, em casa, no bar. Se desfere acusação e palavrões por aí (embora nada como um palavrão quando batemos o dedo na quina da cama). O alerta que nos cabe é: Podemos estar nos distraindo do nosso foco real nesta vida – ser feliz!

Ouvi um palestrante, terapeuta e estudioso de neurociências, dizer que nosso cérebro pode se viciar no sofrimento e que é preciso quebrar esse padrão para atrairmos a prosperidade. Sugerindo exercícios simples, ele nos convidou a dar curto circuito nos pensamentos negativos e a chacoalhar essa fixação que alguns (ou nós mesmos) temos, de tempos em tempos, de mirar na praga, na notícia ruim.

Ser generoso com a nossa vida requer disciplina. Precisamos quebrar o modus operandi prejudicial da mente. Quando avistarmos algum indício de baixa frequência, que tal pensarmos em algo inusitado? “Imagine um elefante amarelo”, dizia o palestrante. “Ou um fusca voador”, brincava ele. Qualquer ideia que ajude a mudar o ritmo interno de pessimismo é bem-vinda.

Mas o que nos leva a compartilhar o negativo? O que faz as pessoas se reunirem em torno da prosa de babel? Fico imaginando como é aquela vida que se alimenta de tragédias. Talvez a pessoa acredite que não mereça a felicidade, que não seja possível seguir um fluxo leve, já que sempre haverá um problema a ser resolvido.

Pode ser que, em algum momento do passado, o indivíduo cristalizou a sensação de menos valia, de que “não é capaz, bom o suficiente”, ou de que “a vida só dá certo se for com muito sacrifício”. Afinal, “nada veio de mão beijada”. E quando adulto, mesmo em outro contexto, a voz da criança assustada ainda lembra aquele episódio congelante e faz a pessoa recuar. Aí a vida fica vai ficando demais e a felicidade já está em outros planos.

Há pessoas que funcionam como ímãs para a confusão. Se regozijam com a desgraça alheia e até a própria. Talvez para elas os problemas tragam um sentido de utilidade. Precisaram ser fortes a vida inteira e não seria agora que aposentariam a armadura. Pois veja, é preciso ficar a postos para apagar os incêndios, para “ajudar os outros”, que não sabem se virar sozinhos.

O que esses cavaleiros não se lembram é de que há vezes (para não dizer sempre) em que precisamos lidar com nossos próprios entraves. Nossos monstros sagrados nos revisitam até perdermos o medo e evoluirmos. Se o outro faz por nós, no intuito de nos ajudar (mas no fundo nos julgando incapazes), quando cresceremos?

Talvez seja perturbador levar os dias com mais alegria e prazer, deixando que o vizinho amadureça por si. Ora, nosso quintal está verde e o do vizinho em chamas. “Estou muito ocupado resolvendo problemas”, é resposta recorrente para uma casta.

Por sorte, dentro de nós habita uma chave de ignição, nosso motor de combustão interno que nos impulsiona para fora do círculo (des)confortável da negatividade. E sempre é tempo de virar essa chave, mas caso esteja enguiçada, deixo aqui uma instrução útil, a depender do modelo do seu “carro”.

Como consertar uma chave de ignição que não gira?
Uma chave de ignição que não gira pode ser frustrante e um desperdício de tempo. E esse é um problema mais comum do que se pensa. Há várias possíveis razões para a chave não girar, e algumas delas podem depender bastante do modelo do seu carro ou de alguma situação específica que esteja acontecendo. No entanto, existem estratégias simples bastante usadas para combater as principais causas de isso acontecer, e vale a pena tentar usá-las antes de recorrer a pedir ajuda na estrada.”

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Onde está sua alma?

Outra noite, um amigo nos dava conselho sobre um trabalho: “Façam com a alma”. Uma rica sugestão, diria, que se estende para as decisões afora o âmbito profissional. Optar por aquilo que faz o coração vibrar traz mais sabor e temperatura à vida. É atraente e furtivo. Mas desde então, a pergunta não me sai da cabeça: “Por onde anda minha alma?”

Reunir mente, corpo e alma em um só lugar não é tarefa simples. Em geral, nosso corpo samba aos quatro ventos, enquanto a mente vagueia entre o passado e o futuro e a alma navega marota por águas indomáveis. As três ilustres juntas, ah isso é pura magia! Ou poderia se chamar presença.

Quem não passou por isso? O corpo chegou ao trabalho, mas a mente ficou lá na cama, convidativa, quentinha, espalhada entre travesseiros e edredom. Você vai passear, mas esqueceu de levar a alma junto, e o tédio não é mais uma novidade. O corpo, este faz as vias necessárias para garantir sua agenda, afinal há compromissos. Já a alma, essa é fugaz, incapsulável. E o que dizer da mente? Espécime escorregadia que, de vez em quando, se exibe para nos trazer à realidade.

Ambiciosas, a mente costuma projetar ao passo que a alma sonha com o impossível, aquilo que o corpo ainda não alcançou. Fica então uma ranhura. Se desejam algo diferente, há um esvaziamento, ou uma tensão. É necessário iniciar um conluio, uma negociação travessa. Enquanto isso o corpo espera, ou então adoece, o que não é incomum.

É difícil admitir quando não vibramos mais com algo. O que fazer? Assumimos uma derrota? Mas há luto ali, não se pode negar. Uma luta também, porque deixar o desejo fugir, cabe um desapego. Estava tudo tão certo, sossegado… Agora falta ar naquele espaço onde as dúvidas ocupam mudas.

Sabe quando o incômodo grita pelas manhãs, e você procura silenciar mente e corpo? Quer dizer para a alma não se rebelar àquela hora do dia, mas ela decide ter luz própria. Há turnos que são assim e a gente atravessa fácil. Outros, no entanto, trazem um cansaço, vontade de se render e acomodar.

E sobre o que meu amigo vinha aconselhando lá no começo, fazer com a alma? Dia desses minha alma deu o ar da graça. Tentei convencê-la a ficar, mas a criatura não se seduziu. Pediu por conquista e eu nada pude prometer. Não pude garantir que andaria de mãos dadas com o corpo, ou que teria horário livre com a mente. Estes são afoitos e volúveis. Não há controle.

Para marcar um encontro com a alma, há que se ter paciência e atrevimento. Namoro à distância, sem falsas promessas, porque ela é matreira. Sabe antes de nós o que acelera o peito. A tal sugestão de “fazer com a alma” é uma atitude de entrega e inocência. Uma conexão com nossos talentos, com aquilo que oferecemos para tornar o mundo melhor. Já se pode ver que a figura é mesmo ilustre, essa dita cuja.

Da última vez que minha alma me fez uma visitinha mais demorada, tomamos café (algo que fazemos bem), papeamos sobre sonhos e curvas. A mente puxou uma cadeira, se interessou, mas de pé atrás (como é de costume), cortou o pão pela metade e nos ponderou. Disse que os tempos não estão para brincadeira. O corpo bateu à porta, sempre chega assim, inadvertido. Pediu uma xícara e comeu bolo com leite.

Animados, marcamos outra rodinha de conversa, a qualquer domingo. Pode ser, foi ótimo, sabe como é… Quem virá? Nunca sei. Mas já deixo a postos uma mesa e um bloco de notas. Dicas valiosas vêm com esses encontros surpresas. Naquela tarde, ficamos nós quatro e uma longa conversa, saboreando pão, café e possibilidades.

Texto originalmente escrito para a coluna do blog Repórter Entre Linhas.


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A arte de chupar mangas

Lembro-me de uma vez que eu e meu amigo, escudeiro de infância, fizemos um campeonato para ver quem comia mais manguitas. Aqueles frutos pequenos e azedinhos, que a gente amassa e morde só a pontinha para sugar toda a polpa. Na época, cada um passou de dez manguitas. Era à tarde, e a mangueira do quintal lá de casa dava uma sombra fresquinha. 

Venho de uma família que chupa mangas. Minha vó, mãe, pai, tios, todos chupavam e ainda chupam mangas. Coité, espada, jasmim, rosa, tommy, bourbon, todas têm seu valor. Espada era a preferida da minha Avó e coité a do meu Avô. Eu ainda gosto mais das menores, dá para comer várias.

Cortar a manga de garfo e faca aqui não tem lugar. A arte de chupar mangas requer envolvimento e coragem. Sabe aquele espírito livre, que suja as mãos e se enche de fios entre os dentes? Que se lambuza roendo até o caroço? Pessoas assim, dispostas a chupar mangas, definitivamente não têm medo do ridículo e saboreiam a vida lambendo os beiços. 

Nem todas as mangas caem do pé, é verdade. Algumas há que colhê-las. Mas na minha visão, onde há mangueiras, há sempre prosperidade. Imagine o pé carregado, umas maduras, outras verdes, convidativas, se exibindo frutíferas e ricas. Um primor.

Um bom pé de manga nos acorda para a generosidade da vida. O balde cheio nos lembra como é bom compartilhar. Dezembro traz esse clima coletivo, é a safra da manga. Minha mãe tem aparecido mais vezes, com baldes cheios da fruta. A geladeira repleta, cheirosa, traz uma sensação de riqueza e saúde.

Adoro levar mangas para os amigos. Uma delicadeza que satisfaz meu espírito criança. Imagino todos eles de mãos amarelas, com o suco esparramando pelo prato, escorrendo pelo braço, colorindo a alma.  

No mundo, já foram reconhecidas mais de 1.600 variedades da fruta. Haja sabor! A India é o habitat natural e a manga teria chegado ao Brasil pelas mãos dos portugueses. O fato é que já somos um dos maiores produtores no mundo, levando essa delícia a barrigas alheias.

A mangueira frondosa lá de casa, quando eu era pequena, provocava aconchego e segurança. Bastava ir lá no quintal e olhar para cima, ver o céu tapado de folhas, respirar o ventinho que corria pelas brechas dos galhos. Pronto, estava tudo explicado para mundo criança.

Hoje não há mais a casa, nem a mangueira e os outros pés de fruta, plantados pelas mãos milagrosas de minha Avó. Mas essa época me vem facilmente à memória, com as mangas que chegam pelas mãos de minha mãe.

Chupar mangas é uma surpresa. A gente se suja, perde a preguiça, esconde o medo, derruba o caroço, fica sem jeito, dribla as regras. E saboreia a vida de boca cheia.


sábado, 12 de novembro de 2016

Repare. Vem um sujeito dirigindo na sua frente, devagar quase parando, testa sua pouca paciência, quando lá pelas tantas escolhe o caminho diferente ao que estava indo. Aí você se pergunta: Por que raios a criatura veio como tartaruga bloqueando o trajeto até aquela bifurcação? Por que apenas não deixou você passar e saiu da frente? Mas assim ocorre no trânsito, assim ocorre na vida.

Não raro insistimos em seguir numa via que não vai nos levar ao destino desejado, enquanto estamos ocupando um espaço precioso e mais útil para um terceiro, de forma deliberada ou não. Pode ser um posto de trabalho (porque não está fácil para ninguém), um local na fila, uma vaga no estacionamento, uma consulta que não vamos, um parceiro que não amamos, até uma amizade que não engrena.

Mas o que poderia acontecer se passássemos adiante o que não tem mais funcionado em nossa vida? O “não te quero, mas não te largo” é poesia de botequim. Mas até o botequim tem suas regras. O apego é dedicado aos garçons e à mesa cativa. Já os pratos e as companhias…

Observando o trânsito, noto ainda outros volantes. Tem a pessoa que não vê nada mais além do próprio carro. Não dá passagem a ninguém e puxa a direção para a direita ou para a esquerda sem a menor cerimônia. É o conhecido “dono da rua”, da razão, da roda de conversa, da vida dos outros.

Conhece o apressadinho? Apesar de toda agilidade, esse perturba. Buzina, corta os demais carros mesmo quando não há espaço, procura sempre uma brecha para tirar vantagem, passa por cima de 
veículos, buracos e pessoas. Para esse estilo, a vida do outro passa ao largo da sua urgência pessoal.

E o que dizer dos desligados? Aerados, avoantes. Esses seres de outro planeta não dirigem, flutuam, e lá fora mísseis e engarrafamentos desabam no céu de algodão. Seguem em outra galáxia chamada lentidão. São desorientados? Tranquilos? Quem descobrir avisa dez esquinas lá atrás. Mas por favor, criaturas mágicas, mantenham-se à direita da pista.

Os espaçosos também merecem destaque, vivem sob uma ótica diferenciada, dirigindo numa faixa imaginária, a do meio. Lá na frente um carro vai convergir à esquerda e você pensa estar atrás de um caminhão. Ah não, é só um veículo de passageiro que ocupa quase toda a pista para fazer a manobra. Esquece que ali cabem dois carros, dez cavalos, uma avestruz e um papagaio.

Os nervosinhos são um caso à parte. Vivem atraindo confusão no trânsito, em casa, no trabalho. Colecionam alguns acidentes e sempre têm um causo para contar. Vivem no ponto, ponto de bala, do pau e da pedra. Reúnem aventuras que doem no bolso e pesam na lataria do carro. Nesses casos, melhor fazer como um amigo meu, também esquentadinho. Coloca uma música zen e, se algum problema te perseguir, sorria com um “namastê” e um “siga em paz”.

Toda semana cruzo com pelo menos um de cada naipe. Na minha vez de apressadinha, saio cortando caminho e o bom dia. A depender do período do mês, posso ficar avoada ou a nervosinha. Mas em qualquer situação, mantenho a pose e guardo a perda de compostura de vidro fechado. 

Originalmente escrito para a coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas.


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Performance de potinho

Estava lá de calças baixas quando a atendente bate à porta: “Senhor, senhor, seu troco.”. “Poxa, justo quando eu estava finalmente relaxando.”, reclama o sujeito em voz baixa. Poderia ser mais uma cena de “Os Normais”, mas é um episódio daqueles mesmos de comédia da vida privada. Foi por essa situação que passou meu amigo (e muitos homens) ao fazer aquele exame do potinho.

Era uma manhã de sol ardido quando o dito cujo se dirigiu ao laboratório, com a nobre tarefa de encher o recipiente com o líquido viscoso. “Fiquei angustiado, extremamente nervoso.”, desabafa explicando não ter tido a mínima coragem de encarar os que aguardavam na sala para outros exames. “Todos ali sabiam. ‘Lá vai ele para a sem vergonhice.’. Eu podia ouvir os pensamentos.”.

As instruções seguintes vieram precisas. No tom do telemarketing, a atendente disse: “O senhor assina esse papel logo, porque todos esquecem. Esse é o potinho e o senhor coloca o conteúdo diretamente dentro, sem tocar com as mãos. Quando terminar, tampe, ponha aqui em cima e deixe a porta aberta que a gente vai saber que o senhor já saiu.” E ainda confortou: “Fique à vontade, tranque a porta e não se preocupe com nada. Tenha um ótimo exame.”.

Ao ouvir a história do meu amigo, penso nas instruções das aeromoças, com aquela voz sexy e nasalada: “Favor desatar o cinto. Nas laterais estão as saídas de emergência. Em caso de despressurização, máscaras cairão. Tenha um ótimo voo.”. Confesso que o riso afrouxou com essa aventura, mas pelo tom da narrativa, percebi que nem só as mulheres passam pelos vexames das pesquisas pélvicas.

Além do terror da autoperformance, existe também o medo pelo desempenho dos terceiros, aqueles pequenos travessos, os amigos espermatozoides. Serão checados indo e vindo, em todas as direções, quase pelo avesso. Medirão o volume, a motilidade, a concentração e a morfologia. Analisados sob todos os ângulos, convertem o tal homem com H àquele ínfimo reservatório com líquido branco, que determinará se a criatura tem ou não aptidão para a vida.

E o causo do amigo continua. Sem isolamento acústico, nem revistas ou vídeos estimulantes, o indivíduo se viu sem aparato técnico para a imersão. As vozes do exterior eram animadoras. "Ô exame da peste!”, desabafou um companheiro na sala ao lado, sem notar que alguém lhe era solidário. “Mulher, meu filho tá doente em casa, com diarreia.”, cochichou uma das atendentes no corredor.

”Tudo por um filho.”, suspira esse meu amigo recordando a epopeia. O resultado deu normal, a questão é com a esposa. Sobrou para ela, como sobra para tantas outras que também se reviram pelo avesso, levam os hormônios à loucura, injetam inúmeros medicamentos, coletam óvulos e percorrem uma longa estrada em busca de um filho. Êxito nem sempre alcançado, via crúcis que não se submete às regras da natureza fácil.

Sobrou para a mulher e também para o bolso, que já começa a custear a promessa do rebento.  Um projeto apenas, porque para vingar, dizem, ainda é um longo processo. Planos, tentativas, homens e mulheres que seguem, mesmo sob relutâncias, porque o sonho, esse não cabe em potinhos.

sábado, 22 de outubro de 2016

Pessoas que agregam

Você já conheceu alguém que só em estar por perto torna seu dia melhor? Pessoas que te inspiram com boas energias e compartilham um astral benéfico por onde passam? Não precisa ser algo transcendental, nem oba-oba, apenas aquela qualidade genuína de tornar o mundo mais criativo e gentil.

São pessoas que agregam, seja pela generosidade, pela atenção com outro, ou por uma motivação sincera de contribuir positivamente. Nelas, é algo natural sentir felicidade por trazer a bonança para a vida alheia. Residentes no mundo de códigos e hashtags, não se importam com rótulos ou agradecimentos, apenas em passar adiante.

Permitem que o fluxo siga e, a despeito da própria vontade, agem com a sabedoria e a leveza de gente grande, que tem o coração maior que o ego. Assim, criam oportunidades e despertam no outro o que há de mais iluminado.

Outro dia minha prima disse ter topado com alguém assim e saiu satisfeita, preenchida por um bem-estar ao chegar perto de um ser agregador. Até a fome que sentia na ocasião passou, simplesmente porque se viu “alimentada” por um amor, por um abstrato que lhe trouxe mais fé na vida e na humanidade.

Esse relato me fez pensar sobre como anda nosso rastro, o que temos espalhado por aí. Fumaça? Fogo? Areia nos olhos dos outros? No meio da correria diária, confesso ser difícil manter-se na linha da leveza, da educação e da bem-aventurança. Mas vez por outra, cruzar com esses seres “mágicos”, também renova minha crença de não precisamos pensar sempre a partir do próprio umbigo.

Nesta vida, conheci algumas pessoas agregadoras. Ainda dá para contar nos dedos, já que os demais por ora vivem sob o automático. Essas criaturas que somam, servem como motivação em tempos difíceis, nos dias em que nosso gênio indomável parece prevalecer sobre o bom senso e a cortesia.

A depender do período da vida, nos animamos com pessoas que agregam tipos particulares de qualidade. Neste momento, em especial, me arrebatam as pessoas que trazem uma leveza na alma. Elas me ensinam sobre tolerância e equilíbrio, principalmente diante de erros. Preferem dar as mãos e seguir vivendo do que morrer na primeira esquina, empacadas na insatisfação eterna, em busca de uma perfeição que nunca chega.

Pessoas leves não apontam o dedo, constroem caminhos. Tampouco passam a mão na cabeça, mas acolhem o outro com respeito, sabem honrar as batalhas que travamos ao tentarmos ser pessoas melhores em nossos propósitos e ações.

Seres que agregam leveza têm a minha profunda admiração. Administram com categoria as vacas magras e as fases prósperas, mantendo o espírito jovem, porque não desperdiçam a vitalidade resmungando os dissabores, mas sorvendo o surpreendente, que traz o vigor “castanhodo”.

Os antigos já diziam que para manter uma vida sã, nada melhor que uma dose diária de loucura e porções semanais de pessoas agregadoras.  

Originalmente escrito para a coluna quinzenal no blog Repórter Entre Linhas.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Nosso mundo peculiar

Outra noite assisti ao “Lar das Crianças Peculiares”, adaptação de Tim Burton do livro “O Orfanato da Srta Peregrine para Crianças Peculiares”, de Ransom Riggs. Antes mesmo de começar a aventura, reparei na quantidade de trailers sobre magia, poderes especiais, realismo fantástico. Pelo menos três filmes nesse estilo serão lançados em breve. Gosto dessa linha de roteiro, mas me perguntei o que tem nos atraído tanto para esse universo inventado. Será que estamos cansando da nossa humanidade? A vida singular já não nos basta?

Após varinhas, poções e feitiços, começou a película. O Diretor de “Edward Mãos de Tesoura”, “A Fantástica Fábrica de Chocolate” e “Alice no País das Maravilhas” explorou uma fotografia escura, cenas sombrias e violentas, como de costume. Por ser um filme de Tim Burton, eu já esperava o enredo exótico dos personagens, onde a imaginação tem som, cor e textura.

A história se desenrola com a guardiã das crianças, Srta. Peregrine, criando uma fenda temporal para o lar dos pequenos órfãos com dons especiais. Era a forma de proteção contra o universo das pessoas “normais”, onde bizarrices como a perseguição aos diferentes é algo banal. Para evitar a ruína da mansão, que seria atingida por um míssil durante a Segunda Guerra Mundial, Srta. Peregrine reinicia o relógio a cada 24h. A sobrevivência dependia, portanto, de ficarem ali, presos no tempo, revivendo as últimas horas como um ritual. Algo não muito distante do que vivemos hoje.

No decorrer da trama, me peguei pensando sobre a nossa impossibilidade de voltar no tempo, de mudar o passado, que está lá, em cartaz na memória. Algumas cenas voltam se exibindo, podemos pensar no que faríamos de diferente, mas não há retorno, o tempo não nos dá carona. Mas se tivéssemos esse poder, o que faríamos? Escolheríamos a segurança da rotina ou o risco do desconhecido?

Vaguei por aquele mundo peculiar do filme, perguntando também se temos poderes especiais, se nossa crueza ainda assim permite o extraordinário. E me recordo dos momentos sublimes que saboreamos com um gesto generoso, com um toque de afeto, das intensas emoções que experimentamos quando acionado aquele super efeito, como é mesmo o nome, ah sim, o da empatia. É, pode ter algo de mágico em nós.

Amigos me lembram ainda que o tempo pode sim parar. Ora, veja que fascinante, seria mais um poder? A depender da emoção vivida à época, há momentos que duram uma eternidade e outros passam num piscar. Parece que temos mesmo essa capacidade de segurar o tempo no coração.

No filme, o protagonista tem o dom de ver o invisível, de enxergar ameaças quando os demais correm perigo sem se dar conta. E não é que conheço gente assim! Pessoas de visão, que percebem o ambiente, os problemas e as oportunidades, antes de todos. Fantástico e real!

Da fala de uma outra personagem, escuto o melhor eco da história. A moça de cabelos louros e pele opaca diz: “Não precisamos que nos faça sentir segurança. Nos fez sentir corajosos e isso é muito melhor.”. Segurança ou coragem? Dúvida cruel nessa era de incerteza, onde arriscar ainda é um talento de poucos, é verdade.

É, nossa humanidade pode ser mesmo peculiar. E, às vezes, nem precisamos usar a varinha de condão para criar o surpreendente. Em todo caso, é bom tê-la sempre no bolso, vai que precisamos numa emergência.


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Sua xícara está cheia?

O que fazer quando nos deparamos com uma pessoa que já sabe de tudo e você mais parece um zé ninguém com nada a contribuir? Desaparecer? Se fingir de estátua? Sorriso amarelo? O que pensar quando estamos diante daquelas criaturas míticas que cruzam nosso caminho com a soberba de Zeus, longe, no entanto, das barbas e poderes do ser épico?

Lembra daquela parábola do mestre, do chá e do discípulo? Pois bem, entre as várias versões contadas, no resumo o discípulo faz uma pergunta e o mestre responde em silêncio, despejando chá em uma xícara até transbordar. O discípulo, sem entender, alerta o mestre que a xícara está cheia, mas este continua a despejar o líquido, que transborda, escorre pela bandeja e molha tudo ao redor. Em linhas gerais, a mensagem é a de que em xícara cheia não cabe mais nada, não há espaço para o novo.

O discípulo, ou mesmo nós, podemos muitas vezes já nos sentir completos, mas ensimesmados em nossas certezas e pré-conceitos. Condicionados a um absolutismo hermético, a novidade não alcança nossas atitudes cegas e surdas ante a quaisquer ideias que não sejam as do nosso umbigo. Uma pena para nós que vamos “repetir de ano”.

Não se apegue à hierarquia entre mestre e discípulo. Não se trata disso aqui. Nem tampouco compare a situação aos discursos das sumidades, aquelas pessoas reconhecidas como referência em determinados assuntos e que de fato nos inspiram com seu conhecimento. Me refiro ao ser humano de carne e osso, aquele que lida com o outro diariamente e que, mesmo sob níveis diferentes, está sempre a aprender algo nesta vida de meu deus. Afinal, quem não pode evoluir com o próprio trabalho, colher melhores resultados, domar a si mesmo?

Dias desses, topei com um genérico de Zeus, nessas atividades que realizamos em grupo, porque a vida é assim, interligada. E o indivíduo tinha (e ainda tem pelo que percebo) uma postura que não se dobrava a ninguém. Imagine aquele sorriso de canto de boca, com ar de superioridade… Imune a críticas, não aceitava nada menos do que se autoelogiar e acreditar piamente que era o melhor.

Mesmo com mundo desabando, ele zombava no íntimo dos que ousavam qualificar seu trabalho. Com essa estrutura irretocável, creio que seja mesmo muito difícil ouvir alguém além do próprio ego. Pois é, o resultado do trabalho não foi o esperado e as divergências viraram pó. Mas o genérico continuou lá, achando que a Terra orbita ao seu redor.

É, mas a cópia não é o original. Para minha sobrevivência e sanidade, preciso encontrar um atalho para esses tipos de encontros. Zeus pode se enfurecer com sua réplica de quinta categoria e soltar seus raios sobre nós, que só buscamos atravessar o dia e acobertar nossa mortalidade.


quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Um amor de Ana

Dizem que era um anjo, “a melhor pessoa que já conheci”, um exemplo de generosidade, de uma bondade única, um amor de Ana. Assim é definida minha tia, Ana Teresa Fontenele, por familiares, amigos e conhecidos.

Entre algumas memórias que guardo, estão as viagens que fazíamos à praia e ao clube. Recordo dela sentada numa cadeira, à beira da piscina do clube militar, junto a seu irmão mais novo, olhando a mim e a seus filhos (meus primos) enquanto arriscávamos mergulhos.

Na minha pouca idade desejava aquela tia paterna para o posto de minha mãe. Perto dela, eu existia, era cuidada, era seguro. Ela me via. No íntimo, eu me questionava por que eu não poderia ser filha dela, por que eu não tinha nascido daquele ventre, onde a família seria mais fácil e amorosa. Delírios de infância.

Tia Ana é uma daquelas pessoas com breve passagem pela terra, mas com um longo caminho de benfeitorias, principalmente a bondade inquestionável que distribuía a leigos. É um daqueles seres cuja boa reputação a precede em muito. Já conheceu alguém assim? Dizem que só em estar ao lado dela, já era tranquilizante, pois transmitia a certeza de dias melhores.

A vida a levou para outros planos, aos 32 anos de idade. O CA de mama roubou a mãe de dois filhos, cinco e três anos à época, uma esposa muito amada e privou a família de um coração gigante. Em agosto desse ano, completaram três décadas de sua partida. Eu tinha quase oito quando se foi, três dias antes do meu aniversário. 

Na lembrança, vejo um quarto com uma luz à penumbra, um corredor misterioso para aquela criança que começava a vida, enquanto a tia amada se ia. Em um certo momento, me disseram para fazer companhia aos meus dois pequenos primos, porque algo tinha acontecido. Tia Ana não estava mais ali.

Injustiça é o que sentem alguns quando pensam no seu desfecho. Mas para Ana não houve fim, não houve o último ato, a trajetória dela continua, inspira e nos ensina. Mesmo à distância, é referência de altruísmo, de doçura e de humanidade. Um ser que veio a este mundo e deixou sua marca. Sua vida nos lembra que não há medida para o amor.

Em homenagem aos seus 30 anos de saudade, seus filhos criaram a Campanha Amor de Ana, com o objetivo de arrecadar produtos diversos (higiene pessoal, roupas, cestas básicas) para a Associação Toque de Vida, que assiste mulheres mastectomizadas. É o amor de Ana que se perpetua, apesar da finitude deste corpo.

Ana Teresa virou nome de rua, de campanha, de união, de solidariedade. Três letras que também representam desafio, coragem e superação. O legado de Ana se mostra além da vida e da morte. Continuam seus feitos, “uma pessoa do bem, de luz”, diz uma irmã emocionada; persiste sua pureza, revelada pelos diversos admiradores.

Permanece a Ana que não foi, que não pode ser, pela brevidade do seu tempo. Porém, mesmo na incontinuidade, ela se faz presente pelo que certamente teria sido. Porque Ana era, e continua sendo, fundamentalmente Amor.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Um brinde ao desencontro

Dizem que o combinado não sai caro, mas há dias em que tudo foge ao nosso controle, a esse pré-combinado que garante a organização da rotina. São aquelas horas nos lembrando que não temos o domínio que achamos ter sobre os acontecimentos e sobre as pessoas. É quando tudo parece desencontrado e irritante. Soa familiar para você?

Nessas ocasiões, é comum procurarmos aquele bendito ser em quem por a culpa. Às vezes, nós mesmos estamos na mira. De tudo um pouco, todos e ninguém somos responsáveis pelo desenrolar dos fatos. Foi como tinha que ser, a nossa revelia. Assim é a vida, selvagem.

Digo isso porque é habitual que os desencontros nos gerem pensamentos do tipo "O que deu errado?", "Em que parte eu tive culpa?", “O que poderia ter sido feito diferente?". Já passou pela sua cabeça algo assim?

Afora as melhorias que podemos tirar de cada conto, o que incomoda nesses casos são as réstias de culpa que nos atazanam o juízo. Ficam lá, martelando, depondo contra nossa competência e maturidade em lidar com as situações. Mas a questão a entender, e principalmente a aceitar, é que não damos conta de tudo, apesar da nossa sensação de onipresença. Não. Não podemos consertar o mundo, as pessoas, o passado, nem colocar um laço e ajeitar os "erros" na mesma hora.

E como lidar com aquele mal estar interno quando algo não vai como o nosso planejado? Podemos nos perguntar: "Fizemos o nosso melhor?", "Realizamos tudo que estava ao nosso alcance?". Só que isso não ajuda muito quando a sensação de erro segue no encalço.

Em geral, essa perseguição culposa pode nos remeter à velha e repetida crença de que "não somos bons o suficiente". E já se avista no horizonte a conhecida senhora chamada autoestima. Muitos percalços esbarram nela, mesmo quando a ligação parece improvável, ou muito ou pouco, retornam ao dilema do sou ou não sou.

Fico invejosa de quem liga o cobiçado botão do “deixa para lá" (para não dizer o “foda-se") e segue sua rotina leve, dorme bem e acorda no dia seguinte com a pele de pêssego. Sábios ou antiempáticos, essas criaturas vivem mais. Não guardam remorsos, criam rugas de idade e não de preocupação, e bebem café sem culpa.

Ah culpa! Ideia bobinha e persistente que inferniza nossos dias desencontrados e nos faz acreditar que nascemos com defeito de fábrica.


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O que aconteceria se só falássemos a verdade?

Zapeando pela TV a cabo, parei nas clássicas caretas de Jim Carrey. Quando me dei conta, lá estava eu novamente assistindo a “O Mentiroso”. Conhece? Filme em que o ator exerce seus malabarismos faciais (quase “O Máskara”) ao perceber que não consegue mais mentir. Impossibilitado graças ao pedido feito silenciosamente pelo filho, frustrado pela constante ausência do pai, desta vez em sua festa de aniversário.

A película sucede com Carrey entrando em frias e também se surpreendendo com as vantagens de não mentir, por tudo e para todos. Ele, que encena um advogado não muito distante da nossa realidade, acredita que tirar vantagem em cada ocasião o faz espertalhão e bem sucedido.

Quando descobre que seus apuros se devem ao desejo de aniversário do filho, Carrey explica ao pequeno: “Às vezes os adultos precisam mentir. Não sei explicar o porquê. Ninguém sobrevive no mundo adulto sem mentir. Eu tenho que mentir, todo mundo mente”. Ao que o garoto responde sem pestanejar: “Mas é isso que faz você ficar mal”.

O diálogo entre pai e filho fez eu me questionar sobre o que aconteceria se todos falássemos apenas a verdade. O caos se instalaria? Viveríamos no mundo apocalíptico? Fui às compras por respostas de amigos e família.

Uma prima otimista diz que quando você fala a verdade todo problema fica do tamanho que realmente é, “nem fica maior, nem menor”. Uma amiga engrossa o coro e defende tudo com transparência. “A verdade é a transmissão da confiança. Com ela tudo permeia tranquilamente. Se todos falássemos a verdade, as pessoas se entenderiam melhor, tudo teria uma condução mais positiva”.

Por outro lado, amigos da estrada do autoconhecimento entendem ser impossível falar só a verdade. “É da própria condição humana essa limitação. E não falar a verdade não significa a mentira consciente, mas a própria incapacidade de perceber as coisas como elas são, ou as defesas psíquicas que existem para nos poupar.”, explica uma amiga terapeuta.

As mentiras exigem defesa, esforço e memória, destaca o outro amigo, também terapeuta. Este entende que falar a verdade não significa uma verborragia confessional de tudo o que se faz. “Isso seria culpa”, diz ele relatando que há uns 15 anos decidiu simplificar a vida e falar a verdade. “Venho alinhando com esta prática, experimentando ser contraditório, volúvel e até incoerente, pois sou verdadeiro com o momento. Uma coisa é verdade, uma hora depois não é mais”.

Transparência, apocalipse, contradição, confiança, palavras que transitam pelo nosso lá e cá diante da verdade e das pequenas-grandes mentiras que (nos) contamos. “Ah, depois eu mando!”, “A gente se fala.”, “Sim, combinamos um dia? Vamos mesmo!”. Para dizer apenas algumas desculpas que damos pelo caminho, a fim de não polemizar com a crueza do que de fato sentimos.

“Não amigo, estou sem tempo e acredito que não nos veremos tão cedo”. “Sinto muito, mas dessa vez não dá, porque não estou com vontade nem disposição de te visitar”. “Preciso de um tempo para arejar as ideias e descansar o corpo”. “Isso é mais do que eu posso suportar”. “Eu te agradeço, mas não quero continuar a partir daqui”. São muitos “não” e “sim” que deixamos de dizer em nome da conveniência e da boa educação.

Pode ser que o mundo se torne mais leve se falemos mais a verdade. As relações passarão por uma zona turbulenta no começo e alguns cacos serão difíceis de remendar. Sobreviver à verdade requer fôlego. Antes ela surge como um furacão até se tornar brisa, porque acreditamos no que Jim Carrey declara – “Ninguém sobrevive no mundo adulto sem mentir.” Mas podemos ir adiante. Além do bonzinho ou do ríspido, existe nossa verdade interior, que está sempre pedindo passagem.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Indo além da perfeição

Semana passada, em meio à votação do impeachment, uma outra notícia sacudiu as redes sociais e gerou memes hilários pela rede. Criatividade à parte, a separação de Fátima Bernardes e William Bonner foi vista também como prenúncio do fim do amor nesta década.

"Não me diz que Fátima e Bonner separaram, porque aí todas as esperanças que existiam de casamento para mim acabaram.", revela o áudio de uma amiga. "Pronto, é impossível a pessoa ficar casada muitos anos.", diz outra. "Se Fatima e Bonner ficaram casados 26 anos, e todo mundo achava que eram perfeitos, mas se separaram, então o meu caso é fichinha.", brinca uma outra.

E lá se foi a crença em um futuro com amor. Só falta agora Tarcísio e Glória, casados há mais de cinquenta anos, se divorciarem para aquela nossa imagem interna de perfeição ruir e ficarmos à deriva. Haverá sorte para o amor?

Na conta do Twitter, Fátima e Bonner se pronunciaram igualmente: "Em respeito aos amigos e fãs que conquistamos nos últimos 26 anos, decidimos comunicar que estamos nos separando." E complementaram: "Continuamos amigos, admiradores do trabalho um do outro e pais orgulhosos de três jovens incríveis.". “É tudo o que temos a declarar sobre o assunto. Agradecemos a compreensão, o carinho e o respeito de sempre. Wiliam e Fátima.”

Utilizaram o "continuamos", verbo que comprova a sequência da vida. Motivos silenciados (não sei sobre a intimidade dos dois), confesso que bate uma tristeza ao ver um belo casal seguir rumos diferentes. Acabamos nos identificando com esse "ideal" de relação, mas disse bem, "ideal", e cá para nós deve estar longe da realidade.

É bem provável que a relação do casal 20 deva ter sido pauta pela parceria e admiração, como eles próprios declararam. Afinal, seria difícil manter 26 anos sem estes valores, em especial para duas pessoas que estão dia a dia na mídia. Algo já teria vazado nesses anos. Porém, nisso tudo, o saldo se revela muito positivo: "três jovens incríveis", duas carreiras sólidas e 26 anos de muita experiência. Créditos que merecem ser celebrados!

Mas o que é duradouro nos dias atuais? O conceito tem variado bastante. Pessoas se conhecem em um dia e acreditam que já estão juntos há uma eternidade. Um mês de trabalho pode se equiparar a anos no currículo da geração Z. Ao mesmo passo, em uma tarde despretensiosa podemos viver um momento sublime em nossas vidas. Em 24 horas, somos capazes de realizar aquele trabalho que nos alavanca o futuro. Um dia se revela na verdade um presente, quando temos tempo para abri-lo no presente.

Nossa busca pela perfeição tem nos levado a fechar as portas para o fluxo da vida, que é incontrolável e mais sábio do que nossas certezas. Talvez, parte da tristeza de alguns esteja na obsessão do "para sempre". Acreditamos que se não é eterno não é válido, se acabou foi porque não deu certo e o fim de algo anula tudo o que foi conquistado até ali. Mas não. Precisamos trocar o “não deu certo” pelo “deu certo até aqui”.

O término de um ciclo (trabalho, relações, objetos) não significa fracasso. É necessário recontextualizar isso dentro da gente e ir além da perfeição. É importante dar espaço àquele sentimento interno que valida cada passo dado e entende que, o que vem, vem para o nosso aprendizado a cada momento. Mesmo que eu e você não gostemos.

A parceria de Bonner e Fátima se foi, e isso não significa uma ameaça a nossa confiança e disponibilidade pela vida que queremos levar, seja a um, a dois... Sejamos gratos por cada fase. Mesmo que ainda não estejamos vivendo a relação que desejamos viver, há muito amor disponível para as próximas décadas.