domingo, 7 de junho de 2009

De Mãos Dadas

“Muitas vezes, achamos a vida do outro interessante e a nossa, monótona. Saímos do nosso eixo e perdemos o equilíbrio, pois estamos buscando algo que julgamos não ter. Vivemos como um fantasma faminto. (...) precisamos olhar para o mundo exterior com generosidade. ‘Eu sou rica e eles também’.”
Natalie Goldberg em “Escrevendo com a Alma”

Sou filha de pais separados e fui praticamente criada por meus Avós, principalmente por minha Avó. Durante muito tempo isso não me incomodou, depois me perturbou demais. Quando passei a olhar para os lados e ver meus amigos e suas famílias, foi que tomei ciência da peculiaridade da minha família.

Festas do colégio para mim sempre foram um terror. Havia apenas duas escolhas: não participar e se sentir excluída ou participar buscando um fantasma na platéia. Imaginando hoje, parece cena de filme de sessão da tarde. A menininha com os olhinhos brilhando, bastante nervosa, procurando no público um rosto conhecido, esperando que no último instante aparecesse alguém. Quando era festa do Dia das Mães, ninguém comparecia, mas eu sempre levava duas lembrancinhas para casa. Uma para minha Vó e outra para minha mãe. Era complicado isso e eu me sentia dividida. Se fosse festa do Dia dos Pais, eu não participava mesmo.

Meu desejo de criança era apenas ter um representante da família nas festas de colégio para mostrar meus passinhos ensaiados durante um mês. Geralmente eu dançava para a família da minha melhor amiga. Foi apenas na sexta e sétima séries que meus Avós, mesmo com sua precariedade de movimentos, assistiram a minha performance sentados na arquibancada de cimento do ginásio. Foi na abertura das Olimpíadas do Colégio.

Outro desejo que sempre tive era que meus pais participassem das reuniões de pais. Uma coisa simples assim foi minha vontade de criança durante todo o colegial. Embora eu nunca tenha dado trabalho para estudar ou tenha sido chamada atenção para justificar a ida de alguém ao colégio, eu queria muito ver meus pais participando dessa reunião. Nunca foram. Na verdade, quem sempre me representou foi minha Vó. Ela sempre foi a minha única responsável, mas não comparecia às reuniões, só assinava em meu nome. Eu não entendia isso direito, só lembro que meus pais nunca responderam por mim.

Talvez as crianças de hoje não se importem com reuniões de pais ou festinhas de colégio. Talvez elas nem queiram que a família ponha os pés por lá para não descobrir o que estão aprontando. O fato é que, como a maioria dos mortais, eu sempre estive em busca de aprovação e amor. E nessa semana descobri que o colégio foi o meio que eu acreditei poder obter isso dos meus pais, pois lá eu sempre dei o meu melhor, tirei notas boas e fui aprovada. Apesar de todo meu esforço e dedicação, o colégio não me trouxe o que queria. Mesmo com a Faculdade e em seguida com a Pós-graduação, o amor e a aprovação dos meus pais não vieram. Como muitas crianças, eu ouvia que não fazia mais do que a minha obrigação. E agora me percebo de novo, fazendo mais uma Pós-graduação, buscando ser melhor, ser aprovada, porque se eu tiver conhecimento serei reconhecida (por eles). Descobri, no entanto, que essa busca tem me imobilizado durante muito tempo.

Meus pais não foram às reuniões e nem às festas de colégio. Também agora não virão. Eles não acompanharam minha dança, nem meus passos e não estarão aqui para ver meu atual espetáculo. Eles não morreram. Apenas sempre optaram por caminhos distantes dos meus. E mesmo assim, eu já adulta feita, acabei descobrindo essa semana que eu ainda gostaria muito da aprovação deles.

Essa ficha está tilintando até agora e eu custei a acreditar. Sabe quando você acha que já andou umas boas léguas e se vê em voltas com sentimentos tão familiares que imaginasse ultrapassados?! Assim estou eu em flagrante. Após uma meditação só me vem o sentimento de que tudo bem amá-los e odiá-los. O importante é aceitar tudo isso. Aceitar que embora eu não soubesse, ou não quisesse ver, meus pais continuam sendo um referencial para minhas decisões.

Eu me questiono sobre o quanto de nossa vida, sem nos darmos conta, temos estado sobre a sombra de nossos pais. Lembro da música “Como nossos pais” cantada pela Elis Regina. Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. No meu caso, ora tentando superá-los, ora me achando pior do que eles em suas escolhas. E assim, vejo que instituí um sistema de eterna comparação em todas as minhas ações, o que me deixou em vários momentos distante da minha intuição e essência. Eu sabia que minha autocrítica era feroz e devido a isso me comparava a tudo. Ultimamente tenho me comparado aos meus amigos. Mas eu não sabia era que a origem dessa comparação é até hoje a tentativa de superar a necessidade de aprovação e amor dos meus pais.

Essa busca por aprovação tem se revelado uma luta interminável na vida, uma luta sem causa aparente, com o objetivo de sempre provar algo para os outros, para mim mesma, para meus pais. Embora minha Vó, sem saber, tenha feito de tudo para suprir essa falta, descobri que ela não conseguiu. Vejo-me então criança, em pé, sozinha e esperando. Esperando algo que não vem e até hoje não veio. Imagine uma criança que os pais esqueceram de pegar no colégio. Ela fica ali, esperando e esperando. Não há lugar para ir, não há o que fazer, a não ser esperar.

Durante a meditação, decido ir ao encontro dessa criança e tirá-la dali, daquele estado imóvel. Acolho minha criança, ponho-na para dormir e vigio seu sono para que seja tranqüilo e seguro. Penteio seus cabelos, faço carinho, elogio suas roupas, vou às reuniões de pais e festinhas de colégio, ensino vários aprendizados sobre a vida, faço sinais positivos acenando que está tudo bem e pego sua mão quando a vejo com medo e insegura. Passeio de mãos dadas com ela por vários lugares, pela praia, pelo parquinho, dançamos juntas, olho-a com amor e finalmente a vejo sorrir.

Estranho não me lembrar enquanto criança de sorrir. Eu sempre tive inveja das gargalhadas de criança. Achava aquilo tão bonito, tão espontâneo e também queria para mim. E só agora, em três décadas, consigo ver minha criança sorrindo. As cenas seguem e estamos sempre juntas, felizes. Eu acompanho todos os seus momentos importantes, em cada passo a vejo evoluir e crescer, chegando até nossa adolescência. Nessa hora, um sentimento de completude e segurança tomam conta de mim. É uma sensação gostosa de amparo e relaxamento. Uma sensação de que está tudo ok.

Depois de toda essa experiência, vejo a criança vir em minha direção e me dar a mão. Percebo que agora ela é quem está ao meu lado participando dos meus momentos de adulta. Ela me observa e pergunta sobre o que tenho feito, diz que eu não preciso ter medo, que ela está comigo. Vivenciar essas cenas é como imaginar um resgate. Como se fosse uma viagem no tempo. Eu adulta indo ao encontro de eu criança, depois nós duas voltando para o tempo presente. Consigo vê-la aqui ao meu lado, curiosa e me olhando com um ar puro e infantil.

Tenho uma nova companhia. Ela é magrinha e um pouquinho dentuça. Cabelos castanhos, curtinhos e assanhados. Um pouco pálida e muito amável. Ela está me pedindo atenção. Quer brincar, perguntar sobre as coisas. Juntas fizemos um belo almoço de reencontro. Um prato ao gosto de criança, uma saborosa macarronada com refrigerante. Depois assistimos um filme infantil chamado “Happy Feet”. Um filme bonito, engraçado e que curiosamente termina com a frase “Eu amo a minha infância e como queria que esse tempo voltasse.”

Sinto que é chegada a hora de reconhecimento, cura e integração. Um momento de presença, perdão e amor. De agora em diante eu e minha criança iremos caminhar juntas, apoiando-se e amando-se como melhores amigas, como irmãs, como uma só num caminho de luz, amor e consciência.

Eu aceito e a acolho minha criança. Agora estamos de mãos dadas na vida.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

A Casa

Com 52 anos de idade, a Casa hoje é uma jovem senhora que passou por quatro gerações e segue numa quinta, porém de desconhecidos. É que a Casa está alugada.

Desfazer- me da Casa é semelhante a dizer adeus a um parente muito amado. Eu não imaginava o quanto até estar aqui em Minas e sabê-la habitada por Outros que não entendem seu valor e sua experiência de vida. O fato é que chegou o momento de dizer adeus.

Hoje, um canto agudo de pássaro que dizia “bem-te-vi” lembrou minha Casa. Eu costumava acordar com os passarinhos. Adorava isso. Sentia-me no campo em plena cidade. Era um privilégio. Os dois pés de acerola no jardim acolhiam vários passarinhos. Quando o vento soprava, todos voavam de uma vez. Era um movimento repetido e único. Merecia uma poesia e uma foto. A Tardinha também trazia esses sons bucólicos. E por mais que houvesse tédio ou tristeza, a essa hora reinava um silêncio de prazer e esperança. Era um momento de fé e desapego. Tenho saudade.

A Casa tinha dessas coisas agradáveis. No quintal, onde um dia viveram mangueiras, coqueiros, goiabeiras, bananeiras, pés de ata, limão e mamão, agora só há a cacimba e grama alta. Tudo cabia ali. Do passado restaram apenas os dois pés de romã e a planta que dá a “flor de laranjeira”. Recordo que no final do dia, o cheiro da flor costumava despertar e caminhar por uma fumaça invisível até me encontrar, no cômodo que fosse, da minha amada Casa. Eu corria ao encontro, juntava uns raminhos e colocava num copo daqueles de requeijão o buquê fresquinho para perfumar meu quarto. Era um aroma virgem e calmante.

Na minha infância, goiaba dava aos montes. Fazia lama e chamava mosca. As manguitas (pequenas mangas docinhas) caíam no quintal num som surdo, meio oco. Tudo acontecia escondido, mas havia movimento na Casa. Lembro do doce de goiaba da minha Vó. Bem doce, era verdade. Nunca gostei muito. Preferia o de mamão e a própria goiaba em fruta bem verdinha. Na mordida, chegava a doer o maxilar. Sabe aquela dor agulhada bem fininha? Pois é, eu gostava.

Havia um lado da Casa em que raramente andávamos. Uma varanda lateral, de piso vermelho em cerâmicas pequenininhas. Não sei por que a porta para esse terraço vivia fechada. Isso impedia a Casa de respirar. Em tempos não muito freqüentes, a Vó abria todas as portas e janelas. Era nas faxinas. O vento dava e trazia luz, arejando os cômodos. A Casa era escura.

Pela Casa passaram empregadas, carros, cachorros e mortes. Minha bisavó e Avô morreram lá. Meu tio quase também. Saiu na ambulância numa noite de domingo, meio sem vida. Tentou se matar. Conseguiu. No quintal jazia ainda a Bec, nossa pequinês de quando eu era bem criancinha. Foi também numa noite de domingo. Demos leite, ela estava quietinha e depois morreu. Eu não tinha medo da Casa. Só às vezes de noite. Uma vez, senti a cama vibrar. Tinha adormecido, jogada com mais duas amigas. Não ligamos. Estávamos exaustas em juventude. O tremor não nos derrubou.

Agora a Casa está lá, fechada para mim, abrigando outras histórias. As lembranças eu trouxe. Tiveram as quedas da minha Vó, as brigas com minha mãe, a bebedeira do meu Avô, as loucuras de livro do meu Pai, as farras com os amigos, os estudos de colégio, as reuniões tão animadas e gostosas. A Casa estava aberta para todos nós, irmãos-amigos. Ela acolhia, ouvia, vigiava. Revelou até gravidez de amiga.

A Casa chegou a ser conhecida como “A Casa do Pinheirão”. Uma árvore enorme, alta de verde seco, empinada para o céu, ficava na entrada, quase a desabar sobre os quartos. Eu vivia pedindo por medo que a tirassem dali. Um dia, cheguei da escola, a rua interditada e os bombeiros cortando o Pinheirão. Fiquei com dó e culpada. Deu um nó de espanto. Poxa, não precisava cortar tudo, apenas podar! Ficou um vazio. Não era mais a “Casa do Pinheirão”.

Tinham também as roseiras. Minha Vó adorava roseiras. Amarelas, brancas e róseas. As vermelhas eram mais raras. Uma noite, eu criança de cinco anos no colo do meu Avô bêbado, caí junto com ele no meio do roseiral. Fiquei toda ralada. Lembro de mim só de calcinha, em cima da mesa vermelha das refeições, toda arranhada. Minha Vó passando mertiolate, eu chorando com o ardor. Não me lembro de beijo nem carinho, só o vermelho mertiolate. Meu Avô ficou lá, estendido na terra das roseiras.

A Casa era assim, cheia de notícias. Hoje, mal sei dela pela imobiliária. Os vizinhos dizem boatos maledicentes. Antes devir para Minas, fui lá me despedir. Seria o meu ritual, quase igual ao de quando me mudei de lá para uma outra casa, bem menor e alugada. Não consegui entrar. O inquilino não apareceu.

Desde então, guardo a Casa em memória. Escrevendo esse texto eu chorei. É muita vida que só eu sei. Aqui em Minas, despeço-me dela. Sinto que é chegada a hora. Está sendo um processo lento e necessário. Seu futuro, ainda é incerto. Nesse movimento, porém, tenho descoberto que minha Casa sou eu. E não importa aonde eu vá, a Casa sempre estará em mim.