sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Vida é colaboração


Um assunto tem me ocupado a cabeça e o coração na última semana – a valorização do trabalho das pessoas. Vivemos em conexão e alguns seres ainda não despertaram para esse fato. Reconhecer a contribuição do outro faz parte da vida em grupo, que ainda é experimentada dia a dia, entre conhecidos e desconhecidos.

Em um mundo cada vez mais colaborativo, legitimar o trabalho do próximo é condição essencial para avançar. Não, não estamos sós, não realizamos as atividades sozinhos, não construímos o resultado fechado na nossa super cápsula protetora. A vida em rede é muito mais do que a nossa imagem no espelho. É interdependência.

Desconsiderar a história das outras pessoas ou menosprezar o resultado construído no coletivo pode ser uma falha de caráter. Talvez haja conserto no futuro próximo, mas, por hora, todas as vezes que não validamos o esforço de alguém, deixamos o mundo mais pobre.

Não, não somos uma ilha onde tudo gira ao nosso redor. Assim como também não é sábio viver querendo tirar vantagem a qualquer custo – das coisas, situações e pessoas. O dicionário diz ser vantagem a “qualidade do que está adiante ou superior = SUPERIORIDADE”. O significado pode estar certo no mundo alheio, mas não no meu. Não quero essa visão que tira proveito sem que o próximo também se beneficie. Dicionário, eu e você estamos em dissonância.

Eu me pergunto o que nos leva a crer que podemos dar conta de todos os espaços, como um organismo autossuficiente, pensando (penando?) sermos onipresente e onipotente. Deve ser nosso complexo recalcado de Deus. Deve ser a carência por importância.

Que possamos nos unir mais em propósito, afinidades e talentos. O seu brilho não afeta o meu, e sim me inspira a ir além, a encontrar a porção de mim que também reluz. Juntando os dons, o mundo fica mais rico e criativo. Vira exponencial, termo que os futuristas têm me a ajudado a descobrir. É na dinâmica da colaboração que alcançamos crescimento muito mais amplo do que o esperado, talvez do sequer imaginado. Sabe quando a sincronia vai chegando na sua timeline? É o fluxo da conexão a pleno vapor.

E tudo isso passa pela confiança. Palavra com um sentido gigante e precioso. Passaporte para os atravessamentos, para as pontes que cruzamos por diferentes motivos e circunstâncias, principalmente nos momentos de transição. Confiança em mim, em você, no outro, na parceria, horando os acordos diários que vamos estabelecendo na vida. Respeitando o caminhar digno, que nem sempre é o mais fácil.

A ideia é que não economizemos elogios e aplausos nessa vida. Que possamos usar a diversidade do verbo colaborar a cada oportunidade. Ganhamos todos ao ajudar, contribuir, apoiar, auxiliar, assessorar, assistir, secundar, favorecer, cooperar, participar, coadjuvar, associar-se, envolver-se, atuar, compor, criar.

Que o seu melhor se junte ao meu, o meu ao seu e que, juntos, ofereçamos o melhor de nós ao mundo, sem moderação.

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.

Ocupando nosso lugar


“No meu lugar tenho força e a vida faz sentido”. Ouvi essa frase de uma conhecida do mundo holístico, quando falava sobre a caminhada espiritual. Lembrei-me das vezes em que senti a força interna brotando e as cores ao redor mais vibrantes. Eram momentos em que me percebia plena, realizando algo com sentido para mim. Devia estar com os pés no meu lugar, do qual falou a colega.

“Uma pessoa que encontrou seu lugar, ajuda outras que ainda estão tentando se encaixar a encontrarem. Dá segurança…”, explica o escritor Gustavo Tanaka. Devem ser justamente aquelas pessoas que nos inspiram com suas histórias, palavras, exemplos. Sabe quando há um brilho ao redor quando falam? Uma aura quase palpável? Elas aparecem e nosso cabelo do braço arrepia, dentro do peito cada palavra ressoa. As horas param enquanto o tal ser encaixado reluz como um norte em tempos sombrios.

“Se você não se sente realmente encaixado no seu lugar, você vai ser tomado pela inveja, vai querer o lugar do outro, vai sentir ciúmes e vai criar muitas guerras”, alerta o mestre espiritual Prem Baba. Mas afinal, que lugar é esse? Sobre o que estão falando ilustres e anônimos? Falam do espaço que é só nosso e ficará vazio até o ocuparmos. Avisam sobre aquele lugar que mais parece o sapato da Cinderela, feito sob medida para cada um de nós. E que, enquanto não habitado, o todo fica menor sem nossa participação genuína.

Penso que, para ocupar esse lugar, não podemos ir apenas com a roupa do corpo. Há que se levar a bagagem junto, com lenços e documentos, porque cada item guarda uma história a contar. Não surgimos do nada. Nossas cicatrizes revelam as batalhas pessoais, aqueles momentos em que pensamos que não íamos conseguir, nossos enganos. Doeu. Às vezes doeu muito. Há vezes em que procuramos esquecer. Mas vejo que, tão mais fundo enterramos essas feridas, tão mais longe estamos do nosso ser total, do nosso lugar.

Os mestres espirituais nos aconselham bravura. Dizem para abrirmos o peito e acolher nossa história, com tudo o que tem lá dentro. Um emaranhado de batalha e pó. Uma vida em alquimia, que está sempre evoluindo, embora não acreditemos. São enfáticos ao recomendar que não reneguemos o passado, mas honremos o ser que nos tornamos. Afinal, eu e você sabemos que houve um longo caminho para chegar até aqui. Nem sempre foi fácil.
Primeiro sobrevivemos aos nossos pais, e seguimos sobrevivendo aos outros e aos nossos próprios fantasmas. Porém, resgatar a força dessas lembranças, mesmo as doídas, faz nosso poder crescer. É o que sinto, é o que me dizem, é o que reparo.

O convite da amiga espiritual, de Gustavo Tanaka e do Prem Baba é o mesmo que eu me faço todos os dias. Como ajustar o binóculo para ver a abundância (onde imaginamos escassez)? Como ressignificar o peso das histórias, trazendo a sabedoria dos aprendizados?

É chegada a hora de sair da sobrevivência e ir além, porque queremos, porque merecemos mais. Sabe aquela bagagem recheada de histórias? Olhemos novamente. Entre calças e sapatos podem estar escondidas outras peças ali. São os talentos, os dons, as potencialidades. As vestes para uso sem moderação, que serão usadas no dia da posse. O dia de festa em que ocuparemos nosso verdadeiro lugar no mundo.

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.

Memórias à mesa

Recentemente li o livro “Escola dos Sabores”, de Erica Bauermeister. Ganhei de aniversário há pelo menos três anos. Estava ali, perdido na prateleira. Resgatei o presente sem pretensão, mas a história foi me inundando de lembranças.

A obra conta a trajetória de oito alunos que iniciam um curso de culinária no restaurante da protagonista Lilian. Uma mulher que, ainda criança, aprendeu a cozinhar como forma de resgatar a mãe depressiva devido à separação do marido. O amor pela culinária fez Lilian descobrir mais. A chef percebeu que a comida pode curar o emocional das pessoas. Para mim, a leitura acabou se transformando em um enredo cativante e um percurso pelos meus afetos.

Cada capítulo vai desvendando os caminhos dos personagens e trazendo receitas e memórias. É bem aí que a gente se flagra nas próprias recordações, aquelas que passam pelo estômago e impregnam o coração.

Fui levada aos períodos da infância, quando comi pela primeira vez pudim. Minha mãe abre a geladeira e diz “prova aqui”, oferecendo uma colher com um pedaço da iguaria. A memória vem doce, com um misto de estranheza infantil pela textura mole que derretia gelada na boca.

Sigo então para os bolos de Coca-Cola, receita que aprendi vendo minha mãe batendo a massa na forma que era da minha bisavó. Uma travessa azul de cerâmica bem pesada, com o fundo gasto pelas colheres de madeira. A mão girando ao misturar ovos, manteiga, farinha, sem saber ainda o que era uma batedeira. Cresci com bolo batidos à mão. Primeiro minha avó com seu Luís Felipe (o preferido dela), depois minha mãe e sua massa de Coca-Cola e, por fim, eu e os adorados bolos de chocolate.

Da infância lembro principalmente das receitas doces, do pavê com biscoito champanhe, do doce de mamão (inigualável) da Avó, do sorvete de abacate… E também dos períodos festivos.

No livro, os alunos aprendem a saborear o significado do Dia de Ação de Graças, cozinhando lentamente os pratos. Lá em casa, recordo os inúmeros natais, nos quais a ceia da meia noite era preparada durante todo o dia 24 de dezembro. O peru, que gastava quase um botijão de gás esperando o termômetro pular para fora ao indicar o fim do cozimento; a farofa temperada com os miúdos da ave; o arroz branco soltinho decorado com passas e ervilha; a salada de batatas, cenoura, azeitona e maionese. E a sobremesa? Parecia obra de arte! Um mosaico de gelatinas multicores, cortadas em pequenos cubinhos e misturadas com leite condensado. Coisa de artista, coisa de minha mãe.

Seguindo na leitura, surge uma memória especial. A feitura do café da tarde! Uma cena que ainda parece poesia para mim, na minha casa e nos lares que visito. Todo santo dia, no meio de tarde, vejo minha avó encostada na pia, a fumaça subindo enquanto coava o café no pano. O cheiro inundando a cozinha, a casa, a alma. É de uma beleza singela que só os amantes do café conseguem dimensionar. É atemporal.

Olhando assim, nossa vida passa mesmo pelas memórias do estômago, essa escola de sabores e afetos. Cresci com minha avó colocando a mesa para comermos juntas, mesmo que só eu e ela, às vezes nós duas e meu primo, outras com alguma visita. Considero ainda mágico o ato de pôr a mesa, dedicando tempo para uma refeição conjunta. Um hábito que tem escasseado. Uma pena…

O tempo moderno deixou as refeições mais rápidas, automáticas e, muitas vezes, solitárias. Comemos resolvendo problemas, engolimos enquanto trabalhamos, damos uma garfada de olho no relógio. Nem lembramos mais do cardápio, das histórias que vêm junto com a preparação dos pratos. Se antes colecionávamos histórias, hoje nos falta memórias à mesa.

Por isso, defendo que, pelo menos uma vez ao mês, tenhamos aquele tempinho para uma mesa posta, para conversa jogada fora e talheres dispostos sem pressa. Uma mesa de café, almoço, ou ainda um simples jantar com sopa. Ah, sopa! Outra boa recordação…

É na mesa que mastigamos as histórias que cabem no peito, dividimos nossas memórias e bebemos o sumo de uma vida simples e preciosa.

Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.

Parece pesadelo

Em tempos de violências simbólicas e reais, e outras inúmeras com siglas infinitas, sobretudo em relação às mulheres, cada iniciativa pode se tornar um ato de rompimento com essa loucura da vida real. Escrever é necessário.

Na última semana, povoou os noticiários o caso do auxiliar de serviços gerais com 17 passagens pela polícia por violência contra mulheres em São Paulo. O episódio tem gerado manifestações as mais diversas nas redes sociais.

Questionam a posição do juiz, que liberou o acusado da ocorrência anterior por acreditar que “não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça”. Solto, o homem cometeu nova agressão. Segue preso, assim como presas estão as dores das das mulheres. Comentários masculinos nas postagens das notícias sobre o caso acaloram as discussões. Mulheres protestam sobre a falta de respeito e segurança. Ninguém se entende e a penúltima vítima se pergunta: “mas meu corto é o que?”.

Tem faltado empatia entre nós, seres. Tem faltado muita coisa.

Quantas violências são necessárias para legitimar a dor de quem sofre? Seja daquele que passou por agressão, seja daquele que se dói por dentro, mesmo “sem” os motivos aparentes por fora. Quantas mortes precisam ocorrer para entendermos a selvageria para a qual estamos caminhando? Quantos mais de nós, nossos conhecidos, nossos desconhecidos, precisam ser violados para nos indignarmos? Quanto mais corrupção precisa existir para usurpar o resto de esperança que escapa? Morremos um pouco a cada dia pela violência que nos chega, porque ela sempre nos alcança.

Dá vontade, às vezes, de resetar o mundo, o jogo, nós bonecos. Por que é cansativo valer-se da dose diária de fôlego para chegar ao fim do dia em pé. É exaustivo usar as inúmeras vidas acumuladas para resistir, como nas lutas dos joguetes virtuais onde se ganha pontos por eliminar os outros.

É fatigante explicar que em nosso corpo não há direito de terceiros – SIMPLESMENTE NÃO HÁ – que o outro não pode tirar a vida de alguém – NÃO, NÃO PODE – que a dor pede escuta – ME OUVE – que a miséria exaspera e não é uma condição humana – NUNCA SERÁ.

Nessa matriz congestionada de violência, parecemos seres de ficção, acoplados a tubos de oxigênio invocados a cada falta de ar, nas cenas absurdas de involução humana. Parece que o pouco que fazemos não é mais o suficiente e que são precisos os tais super heróis para resolverem esse efeito dominó em que nos metemos.

Parece que é sonho. Mais da metade pesadelo, daqueles que a gente grita e a voz não sai, que a gente corre e não se move do lugar, quando de repente somos pegos desprevenidos, nus, e todos riem de nós.

Vergonha alheia, vergonha minha, vergonha de quem tem vergonha na cara em olhar para esse mundo de ponta cabeça. Injúria! Perjúrio? Queria eu. Parece mesmo pesadelo.

Queria um texto de alegria, de esperança. Por agora sai um texto triste, de respiro à procura de sobreviver a nós, mundo.

A cada amanhecer, levanto me dizendo que dias melhores virão. Parece sonho, metade ainda pesadelo, metade espera.


Texto originalmente escrito para a coluna quinzenal do Blog Repórter Entre Linhas.