quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Um amor de Ana

Dizem que era um anjo, “a melhor pessoa que já conheci”, um exemplo de generosidade, de uma bondade única, um amor de Ana. Assim é definida minha tia, Ana Teresa Fontenele, por familiares, amigos e conhecidos.

Entre algumas memórias que guardo, estão as viagens que fazíamos à praia e ao clube. Recordo dela sentada numa cadeira, à beira da piscina do clube militar, junto a seu irmão mais novo, olhando a mim e a seus filhos (meus primos) enquanto arriscávamos mergulhos.

Na minha pouca idade desejava aquela tia paterna para o posto de minha mãe. Perto dela, eu existia, era cuidada, era seguro. Ela me via. No íntimo, eu me questionava por que eu não poderia ser filha dela, por que eu não tinha nascido daquele ventre, onde a família seria mais fácil e amorosa. Delírios de infância.

Tia Ana é uma daquelas pessoas com breve passagem pela terra, mas com um longo caminho de benfeitorias, principalmente a bondade inquestionável que distribuía a leigos. É um daqueles seres cuja boa reputação a precede em muito. Já conheceu alguém assim? Dizem que só em estar ao lado dela, já era tranquilizante, pois transmitia a certeza de dias melhores.

A vida a levou para outros planos, aos 32 anos de idade. O CA de mama roubou a mãe de dois filhos, cinco e três anos à época, uma esposa muito amada e privou a família de um coração gigante. Em agosto desse ano, completaram três décadas de sua partida. Eu tinha quase oito quando se foi, três dias antes do meu aniversário. 

Na lembrança, vejo um quarto com uma luz à penumbra, um corredor misterioso para aquela criança que começava a vida, enquanto a tia amada se ia. Em um certo momento, me disseram para fazer companhia aos meus dois pequenos primos, porque algo tinha acontecido. Tia Ana não estava mais ali.

Injustiça é o que sentem alguns quando pensam no seu desfecho. Mas para Ana não houve fim, não houve o último ato, a trajetória dela continua, inspira e nos ensina. Mesmo à distância, é referência de altruísmo, de doçura e de humanidade. Um ser que veio a este mundo e deixou sua marca. Sua vida nos lembra que não há medida para o amor.

Em homenagem aos seus 30 anos de saudade, seus filhos criaram a Campanha Amor de Ana, com o objetivo de arrecadar produtos diversos (higiene pessoal, roupas, cestas básicas) para a Associação Toque de Vida, que assiste mulheres mastectomizadas. É o amor de Ana que se perpetua, apesar da finitude deste corpo.

Ana Teresa virou nome de rua, de campanha, de união, de solidariedade. Três letras que também representam desafio, coragem e superação. O legado de Ana se mostra além da vida e da morte. Continuam seus feitos, “uma pessoa do bem, de luz”, diz uma irmã emocionada; persiste sua pureza, revelada pelos diversos admiradores.

Permanece a Ana que não foi, que não pode ser, pela brevidade do seu tempo. Porém, mesmo na incontinuidade, ela se faz presente pelo que certamente teria sido. Porque Ana era, e continua sendo, fundamentalmente Amor.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Um brinde ao desencontro

Dizem que o combinado não sai caro, mas há dias em que tudo foge ao nosso controle, a esse pré-combinado que garante a organização da rotina. São aquelas horas nos lembrando que não temos o domínio que achamos ter sobre os acontecimentos e sobre as pessoas. É quando tudo parece desencontrado e irritante. Soa familiar para você?

Nessas ocasiões, é comum procurarmos aquele bendito ser em quem por a culpa. Às vezes, nós mesmos estamos na mira. De tudo um pouco, todos e ninguém somos responsáveis pelo desenrolar dos fatos. Foi como tinha que ser, a nossa revelia. Assim é a vida, selvagem.

Digo isso porque é habitual que os desencontros nos gerem pensamentos do tipo "O que deu errado?", "Em que parte eu tive culpa?", “O que poderia ter sido feito diferente?". Já passou pela sua cabeça algo assim?

Afora as melhorias que podemos tirar de cada conto, o que incomoda nesses casos são as réstias de culpa que nos atazanam o juízo. Ficam lá, martelando, depondo contra nossa competência e maturidade em lidar com as situações. Mas a questão a entender, e principalmente a aceitar, é que não damos conta de tudo, apesar da nossa sensação de onipresença. Não. Não podemos consertar o mundo, as pessoas, o passado, nem colocar um laço e ajeitar os "erros" na mesma hora.

E como lidar com aquele mal estar interno quando algo não vai como o nosso planejado? Podemos nos perguntar: "Fizemos o nosso melhor?", "Realizamos tudo que estava ao nosso alcance?". Só que isso não ajuda muito quando a sensação de erro segue no encalço.

Em geral, essa perseguição culposa pode nos remeter à velha e repetida crença de que "não somos bons o suficiente". E já se avista no horizonte a conhecida senhora chamada autoestima. Muitos percalços esbarram nela, mesmo quando a ligação parece improvável, ou muito ou pouco, retornam ao dilema do sou ou não sou.

Fico invejosa de quem liga o cobiçado botão do “deixa para lá" (para não dizer o “foda-se") e segue sua rotina leve, dorme bem e acorda no dia seguinte com a pele de pêssego. Sábios ou antiempáticos, essas criaturas vivem mais. Não guardam remorsos, criam rugas de idade e não de preocupação, e bebem café sem culpa.

Ah culpa! Ideia bobinha e persistente que inferniza nossos dias desencontrados e nos faz acreditar que nascemos com defeito de fábrica.


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O que aconteceria se só falássemos a verdade?

Zapeando pela TV a cabo, parei nas clássicas caretas de Jim Carrey. Quando me dei conta, lá estava eu novamente assistindo a “O Mentiroso”. Conhece? Filme em que o ator exerce seus malabarismos faciais (quase “O Máskara”) ao perceber que não consegue mais mentir. Impossibilitado graças ao pedido feito silenciosamente pelo filho, frustrado pela constante ausência do pai, desta vez em sua festa de aniversário.

A película sucede com Carrey entrando em frias e também se surpreendendo com as vantagens de não mentir, por tudo e para todos. Ele, que encena um advogado não muito distante da nossa realidade, acredita que tirar vantagem em cada ocasião o faz espertalhão e bem sucedido.

Quando descobre que seus apuros se devem ao desejo de aniversário do filho, Carrey explica ao pequeno: “Às vezes os adultos precisam mentir. Não sei explicar o porquê. Ninguém sobrevive no mundo adulto sem mentir. Eu tenho que mentir, todo mundo mente”. Ao que o garoto responde sem pestanejar: “Mas é isso que faz você ficar mal”.

O diálogo entre pai e filho fez eu me questionar sobre o que aconteceria se todos falássemos apenas a verdade. O caos se instalaria? Viveríamos no mundo apocalíptico? Fui às compras por respostas de amigos e família.

Uma prima otimista diz que quando você fala a verdade todo problema fica do tamanho que realmente é, “nem fica maior, nem menor”. Uma amiga engrossa o coro e defende tudo com transparência. “A verdade é a transmissão da confiança. Com ela tudo permeia tranquilamente. Se todos falássemos a verdade, as pessoas se entenderiam melhor, tudo teria uma condução mais positiva”.

Por outro lado, amigos da estrada do autoconhecimento entendem ser impossível falar só a verdade. “É da própria condição humana essa limitação. E não falar a verdade não significa a mentira consciente, mas a própria incapacidade de perceber as coisas como elas são, ou as defesas psíquicas que existem para nos poupar.”, explica uma amiga terapeuta.

As mentiras exigem defesa, esforço e memória, destaca o outro amigo, também terapeuta. Este entende que falar a verdade não significa uma verborragia confessional de tudo o que se faz. “Isso seria culpa”, diz ele relatando que há uns 15 anos decidiu simplificar a vida e falar a verdade. “Venho alinhando com esta prática, experimentando ser contraditório, volúvel e até incoerente, pois sou verdadeiro com o momento. Uma coisa é verdade, uma hora depois não é mais”.

Transparência, apocalipse, contradição, confiança, palavras que transitam pelo nosso lá e cá diante da verdade e das pequenas-grandes mentiras que (nos) contamos. “Ah, depois eu mando!”, “A gente se fala.”, “Sim, combinamos um dia? Vamos mesmo!”. Para dizer apenas algumas desculpas que damos pelo caminho, a fim de não polemizar com a crueza do que de fato sentimos.

“Não amigo, estou sem tempo e acredito que não nos veremos tão cedo”. “Sinto muito, mas dessa vez não dá, porque não estou com vontade nem disposição de te visitar”. “Preciso de um tempo para arejar as ideias e descansar o corpo”. “Isso é mais do que eu posso suportar”. “Eu te agradeço, mas não quero continuar a partir daqui”. São muitos “não” e “sim” que deixamos de dizer em nome da conveniência e da boa educação.

Pode ser que o mundo se torne mais leve se falemos mais a verdade. As relações passarão por uma zona turbulenta no começo e alguns cacos serão difíceis de remendar. Sobreviver à verdade requer fôlego. Antes ela surge como um furacão até se tornar brisa, porque acreditamos no que Jim Carrey declara – “Ninguém sobrevive no mundo adulto sem mentir.” Mas podemos ir adiante. Além do bonzinho ou do ríspido, existe nossa verdade interior, que está sempre pedindo passagem.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Indo além da perfeição

Semana passada, em meio à votação do impeachment, uma outra notícia sacudiu as redes sociais e gerou memes hilários pela rede. Criatividade à parte, a separação de Fátima Bernardes e William Bonner foi vista também como prenúncio do fim do amor nesta década.

"Não me diz que Fátima e Bonner separaram, porque aí todas as esperanças que existiam de casamento para mim acabaram.", revela o áudio de uma amiga. "Pronto, é impossível a pessoa ficar casada muitos anos.", diz outra. "Se Fatima e Bonner ficaram casados 26 anos, e todo mundo achava que eram perfeitos, mas se separaram, então o meu caso é fichinha.", brinca uma outra.

E lá se foi a crença em um futuro com amor. Só falta agora Tarcísio e Glória, casados há mais de cinquenta anos, se divorciarem para aquela nossa imagem interna de perfeição ruir e ficarmos à deriva. Haverá sorte para o amor?

Na conta do Twitter, Fátima e Bonner se pronunciaram igualmente: "Em respeito aos amigos e fãs que conquistamos nos últimos 26 anos, decidimos comunicar que estamos nos separando." E complementaram: "Continuamos amigos, admiradores do trabalho um do outro e pais orgulhosos de três jovens incríveis.". “É tudo o que temos a declarar sobre o assunto. Agradecemos a compreensão, o carinho e o respeito de sempre. Wiliam e Fátima.”

Utilizaram o "continuamos", verbo que comprova a sequência da vida. Motivos silenciados (não sei sobre a intimidade dos dois), confesso que bate uma tristeza ao ver um belo casal seguir rumos diferentes. Acabamos nos identificando com esse "ideal" de relação, mas disse bem, "ideal", e cá para nós deve estar longe da realidade.

É bem provável que a relação do casal 20 deva ter sido pauta pela parceria e admiração, como eles próprios declararam. Afinal, seria difícil manter 26 anos sem estes valores, em especial para duas pessoas que estão dia a dia na mídia. Algo já teria vazado nesses anos. Porém, nisso tudo, o saldo se revela muito positivo: "três jovens incríveis", duas carreiras sólidas e 26 anos de muita experiência. Créditos que merecem ser celebrados!

Mas o que é duradouro nos dias atuais? O conceito tem variado bastante. Pessoas se conhecem em um dia e acreditam que já estão juntos há uma eternidade. Um mês de trabalho pode se equiparar a anos no currículo da geração Z. Ao mesmo passo, em uma tarde despretensiosa podemos viver um momento sublime em nossas vidas. Em 24 horas, somos capazes de realizar aquele trabalho que nos alavanca o futuro. Um dia se revela na verdade um presente, quando temos tempo para abri-lo no presente.

Nossa busca pela perfeição tem nos levado a fechar as portas para o fluxo da vida, que é incontrolável e mais sábio do que nossas certezas. Talvez, parte da tristeza de alguns esteja na obsessão do "para sempre". Acreditamos que se não é eterno não é válido, se acabou foi porque não deu certo e o fim de algo anula tudo o que foi conquistado até ali. Mas não. Precisamos trocar o “não deu certo” pelo “deu certo até aqui”.

O término de um ciclo (trabalho, relações, objetos) não significa fracasso. É necessário recontextualizar isso dentro da gente e ir além da perfeição. É importante dar espaço àquele sentimento interno que valida cada passo dado e entende que, o que vem, vem para o nosso aprendizado a cada momento. Mesmo que eu e você não gostemos.

A parceria de Bonner e Fátima se foi, e isso não significa uma ameaça a nossa confiança e disponibilidade pela vida que queremos levar, seja a um, a dois... Sejamos gratos por cada fase. Mesmo que ainda não estejamos vivendo a relação que desejamos viver, há muito amor disponível para as próximas décadas.