quinta-feira, 28 de julho de 2016

What?


Nesse tempo de discussões virtuais, achismos e agressões, fui mordida pelos enfrentamentos dos grupos de WhatsApp. Não escapei à regra.

Um amigo posta foto no grupo ao lado de Biel, e lá se vai eu, que tanto fujo das brigas de palavras, alertar meu amigo (que petulância a minha!) sobre a polêmica envolvendo o MC e uma jornalista do portal IG. "Olhe suas companhias", solto em tom de repreensão.

A resposta não poderia ser diferente, veio afiada: "Aquilo é uma vagabunda... Foi até demitida, outra repórter que será testemunha disse que ela se ofereceu para ele.".

Aqueles comentários começaram a martelar na minha cabeça. Pronto, acabou meu sossego e postura zen. Me senti mal com a palavra "vagabunda", com o fato de ser mulher, com o contexto de assédio e com a questão, claro, da envolvida ser jornalista (minha profissão). Acusei então esse amigo de manter a retórica, no quesito mulher, na era do patriarcado.

Para quem não acompanhou o caso, no dia 3 de maio deste ano, uma jornalista de 21 anos do portal IG foi entrevistar o tal MC sobre o lançamento do novo CD. Em contrapartida, segundo áudios e boletim de ocorrência divulgados pela rede, a jovem ouviu sentenças do tipo “se te pego, te quebro no meio”, “cuzona”, “Sim, você quer que eu te dê um (selinho)?”, "gostosinha", “Queria que sua entrevista fosse a última do dia, te levaria para um hotel e te estupraria rapidinho”. Abalada, a repórter tirou alguns dias para se recuperar, mas quando retornou ao trabalho foi demitida.

Reponsabilidades à parte (MC, jornalista, IG, testemunhas, “cultura” do estupro...), questionei meu amigo principalmente sobre o emprego do "adjetivo" vagabunda, e acabei sendo indagada sobre minha honestidade. Por que eu não fiquei calada?! Se tem uma coisa que mexe com minhas vísceras é a tal desonestidade. A palavra mágica que vira aquela chave interna escondida em todos nós, o botão vermelho que me coloca no modo "olho arregalado". Para outros pode ser a senha “fraco”, “irresponsável”, “mentiroso”, para mim é “desonestidade”.

Novamente, dentro de mim algo ecoava, fiquei introspectiva. Comecei a refletir sobre o que há de desonesto em mim, sobre o quanto negocio com minha consciência alguns favores.

Não sou modelo, e creio que ninguém é, embora eu tenha como referência um outro amigo. Não o tomo pela perfeição, mas pela firmeza de caráter e bom coração, sempre, até mesmo quando ele é ácido nos comentários. Acredito na integridade dele e na justiça que lança sobre as situações. Só por isso já me sinto mais esperançosa nos dilemas diários e na vida. É como se dissesse a mim mesma, há alguém honesto e justo no mundo. Não é que eu seja pessimista (não sou), é que ter esse “porto-seguro” aquieta a alma.

O quanto de desonesto há em mim? E a pergunta tilintou um dia inteiro, dois, três. Até agora.

Esse amigo do WhatsApp indagou se avanço sinal vermelho. Sim, avanço, principalmente para não ser assaltada à noite, diria eu. Às vezes até me intitulo "a rainha do fotossensor", numa brincadeira que não é de graça e coça no bolso. Assumo: ir devagar não é meu forte.  Nem com a dor, nem com o amor. Mas afinal, devo levar tudo a ferro e fogo?! A ética, porém, não aceita desculpas.

Sim, reconheço que guardo lugar na fila para uma amiga, omito alguns comentários desagradáveis de uns para outros, e minto para mim quando digo que posso comprar só mais aquele sapato. "E essa blusa? Cabe na parcela do cartão." Engano a mim mesma me passando de tranquila, quando sou uma criatura altamente impaciente. Entre tantas outras pequenas e grandes (algumas admito inconfessáveis) trapaças, concordo com meu amigo: "E existem pessoas bem melhores do que eu e do que você na política." Mais um ponto que é fato, existem seres melhores do que eu. Ah, esqueci de dizer, o fulano é político, o qual sempre defendi para todos por ser meu amigo de infância. Um a zero para ele.

E na continuidade das trocas de farpas, o amigo destaca, "Quando você fala do meio que vivo, fala de mim." É justo, ele tem razão novamente, mais um ponto no placar do meu desarrazoamento. E quem hoje não desacredita na idoneidade dessa classe?! – Pensei convicta. É, mas a parte não é todo.

"No mesmo meio demagógico da nossa classe média que sempre vivemos", complementa meu amigo com aquele ás de ouro da canastra real, que vem selar a partida, há muito perdida por mim.

O que sobrou? O grupo continua, obviamente, só que fiquei com o nó no peito e foi como se algo quebrasse dentro de mim. "Dramática!", classificaria esse amigo. Também é verdade. Com sentimentos tento ponderar, mas quando sinto, sinto.


Com o placar de quatro a zero, só cabe recolher minha desonestidade e imperfeição, as minhas tentativas de tentar fazer as coisas de maneira correta, quando estou a anos luz da justeza. Até que eu vire o placar, vou evitar confusão.

terça-feira, 26 de julho de 2016

A garota de rosa schocking



Estava numa loja de departamentos domingo à tarde quando avistei uma simpática garotinha, lá pelos seis anos de idade, vestida da cor rosa da cabeça aos pés. Blusa, calça, sapato, bolsa e fivela no cabelo, tudo combinando. Recordo de mim mesma, aos dez anos, no meu traje infantil de moletom e bota da Xuxa (quem nunca?), ambos rosáceos, motivo de orgulho infantil e hoje de zombaria íntima.

A cena na loja de roupas me fez lembrar também do tempo em que meninas eram apenas de rosa e os meninos somente de azul. Algo assim monocromático e chatinho. Tempo este diferente da atual propaganda de uma outra loja de departamentos que diz - “Misture, ouse, divirta-se. E repita.”. Um vídeo que causou a tradicional polêmica nas redes sociais. Por um lado, pessoas por trás de seus perfis demonstravam ‪#‎SantaIndignação, denunciavam que a marca estava impondo a ideologia de gênero, e convocavam um ‪#‎boicote à loja para mostrar o repúdio. Sob outra perspectiva, a liberdade proposta pelo comercial foi celebrada, refletindo os anseios de tantas pessoas que buscam por espaço e representação.

Não é à toa que a música “Dare” (Ouse, para tradução em português), interpretada na propaganda pela jovem cantora brasileira Raíza, diz que “é hora de ir a lugares que pertencemos”, é hora de ousar, “de alcançar o que está dentro da sua alma” e “de ser quem queremos ser”.

De fato, estamos numa época na qual buscamos nos alcançar, reunir nosso corpo, mente e espírito num só lugar, aqui e agora. Só para variar um pouquinho a loucura desse dia a dia esquizofrênico. É familiar estarmos com a cabeça no trabalho, o corpo em casa e a alma em Bali. E o nosso coração?! Ah, esse anda muitas vezes vagando por aí...

A roupa, como extensão da personalidade e da cultura, tem o poder de nos trazer essa sensação de pertencimento, de expressar nosso humor, ou até mesmo do inverso - expor aquilo que tanto lutamos por esconder. Assim a roupa nos revela e, não raro, acaba expondo o oposto do que queremos contar sobre nós mesmos. É o que se constata, em geral, naqueles programas de televisão fechada, que mudam o estilo da pessoa porque os amigos ou a família denunciam a criatura como “deselegante”, “inapropriada”, “vulgar”.

O interessante é ver que ao longo dessas programações sempre há em comum na vida das personagens um episódio que mudou radicalmente a forma como se vestiam. Um marco, em geral na adolescência, que as fez decidir mudar o próprio perfil para serem aceitas em um determinado grupo, admiradas por outras pessoas, ou para se sentirem mais importantes. A eterna busca humana de todos nós, como dizem os psicólogos - reconhecimento e aceitação.

Experimentar mais cores, ousar na combinação, repetir as peças, tudo está dentro da nossa cabeça e no limite da nossa criatividade. E hoje até a moda segue um viés mais sustentável, remodela peças antigas, revisita brechós e trabalha com materiais alternativos mais ecológicos. Quem nunca ouviu falar dos sapatos veganos, óculos de madeira abandonada, roupas e acessórios confeccionados com garrafas PET recicladas e misturadas ao algodão?

Estampado, florido, preto, listrado, furta-cor, sou adepta de vestir o que nos cai bem no humor do dia. Se o arco íris inteiro está disponível par nós, por que não usarmos a nosso favor?! Lembro que em alguns dias já vesti roupas com a qual não me senti bem e em outros dias usei o mesmo look, mas me achei ótima. A presença de espírito foi a grande diferença. A moda também. É uma expressão de dentro para fora.

Antes de sair do shopping, ao pagar o estacionamento, me surpreendo com mais uma garotinha também de rosa, da cabeça aos pés. Me pergunto se é preferência dos pais ou escolha da criança. Os especialistas dizem que as meninas começam a procurar por objetos cor de rosa a partir dos dois anos de idade. Já teorias antigas defendiam que a origem da afinidade das garotas pelo tom rosa tenha raízes na pré-história, quando habitávamos cavernas e as mulheres saíam para procurar frutas. Parece que desenvolvemos uma espécie de sensibilidade para tons avermelhados.

No entanto, pesquisas mais atuais dizem que os bebês não são biologicamente determinados para preferir cores em particular. Conclusão - não nascemos programados com uma paleta de cores.

Saímos das cavernas para desbravar o mundo e o que é a vida senão um grande barato de ousar, misturar e nos divertir?!

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A violência que vem de dentro‏



Por esses dias, pude conferir o filme "Mais Forte que o Mundo", que conta a trajetória de José Aldo Junior, desde quando praticava jiu-jítsu na periferia de Manaus, no estado do Amazonas, até a conquista do título e a carreira de sucesso como esportista no MMA (Mixed Martial Arts).

Por uma década, o manauara manteve o cinturão de peso pena do UFC (Ultimate Fighting Championship), mas em 12 de dezembro de 2015 foi nocauteado pelo irlandês Conor McGregor, após somente treze segundos de espetáculo. A derrota rompeu a invencibilidade de Aldo, considerado o primeiro e mais dominante campeão em sua categoria na história do UFC.

Enquanto eu assistia à vida do lutador sendo narrada, aquela violência toda que garantiu a sobrevivência de Aldo por anos ressoava dentro de mim. O enredo de "Mais Forte que o Mundo" se apoia basicamente na relação entre pai e filho. E a vida de Aldo também. Seu José (interpretado por Jackson Antunes) era o pai descontrolado que quando bebia revidava as frustrações na esposa. Em seguida, arrependido, no fundo do poço, recomendava para o filho ir para longe, ser diferente dele e buscar outro futuro.

A mãe (na trama Cláudia Ohana), que a tudo suportava, em um certo momento da narrativa, reconhece seu limite e finalmente sai de casa. Mas em confrontos com o filho, repetia a célebre sentença - "Você é igual a seu pai." E assim, também o fazia sua namorada e atual esposa, Viviane. Durante as brigas, a moça (encenada por Cléo Pires) decretava o quanto Aldo era o espelho do pai.

Em meio aos diálogos da película, o treinador questionava o garoto se ele sabia a diferença entre brigar e lutar, se tinha ideia de até onde aquela raiva toda iria levá-lo. Dedé Pederneiras, o treinador carioca, é a pessoa que deu oportunidade, direção e sentido à vida do esportista. E na ficção, também desempenha a figura do mentor, na mítica "jornada do herói". Na recente disputa, em 9 de julho de 2016, Aldo reverenciou Pederneiras dizendo que lutava pelo treinador e o amava.

No filme, os olhos do ator José Loreto (personagem de Aldo) retrataram muito bem esse “Rinoceronte", como é representando o esportista numa propaganda de energético. Esse tanque indomável, um animal capaz de trucidar quem subisse ao ringue e também quem cruzasse com ele nas ruas, pois Aldo levava consigo essa raiva latente, em ebulição, inflamável ao menor sinal de discordância. Evidentemente, envolveu-se em brigas, apanhou, bateu e ainda assim não conseguia esgotar toda sua energia de vida (e de morte).

O Scarface, apelido de Aldo devido à cicatriz no rosto por um acidente quando bebê, não se desvencilhava das memórias violentas, independente da distância. Quanto mais para longe ia, mais Aldo carregava o pai dentro de si, com todas as angústias e negações próprias dessa relação. No entanto, por mais que recusasse, travava uma briga interna de semelhança e diferenciação da figura paterna.

Talvez essa também se revele uma das nossas, senão a maior, grande batalha na vida. Pelo menos para a maioria de nós mortais, é um enorme desafio carregar os pais dentro de si, equilibrando a inquietação interior com o que há lá fora, no mundo. A busca pela individualidade, o medo de não repetirmos o que julgamos "ruim", tem geralmente como ponto de partida e chegada nosso pai e nossa mãe. Mas se queremos ter prosperidade na vida e paz no coração, é preciso nos reconciliar com eles, dizem sempre os especialistas.

Nesse processo, é importante reconhecer a violência que vem de dentro, perceber o quanto ela influencia nossas atitudes agressivas e acaba reverberando no outro, fora de nosso controle. É necessário acolher nosso rinoceronte interno e guiá-lo para ser um aliado.

Catalisar a raiva em ação construtiva requer primeiramente coragem, é verdade. Nessa jornada de autoconhecimento, almofadas, sacos de areia, ar livre, são aliados. Mas para quem pensa que não há raiva dentro de si, os terapeutas sugerem observar mais de perto. Há muita energia criativa que pode virar frustração e sim, raiva, se não dermos espaço necessário para ela se expressar, se escondemos nossos talentos com medo de não sermos bom o suficiente, ou de não estarmos adequados. É aquele sentimento latente que, muitas vezes, nos envergonha e nos rotula de "descontrolado", “impulsivo”, “mal amado”.

E assim foi com Aldo, numa trajetória às vezes épica, às vezes cômica, relutante em acolher o próprio passado, o pai e a mãe. Mas quando o fez, liberou o caminho para se tornar o campeão. Encarar nosso animal interno, que nem é tão feio quando o aceitamos, exige disposição. Disposição para compreendermos que nossos pais fizeram o melhor que podiam, a seu momento e com os recursos que dispunham, para admitirmos quando parar, disposição para desistirmos de sermos perfeitos.


terça-feira, 19 de julho de 2016

“Esse filme é triste papai”


Sexta-feira à noite. Correria no trânsito para alcançar a sessão noturna de "Procurando Dory". Fui assistir com amigos e suas crianças, que agitadas aguardavam ansiosas a programação há muito prometida. Depois iríamos comer pizza, enquanto a dupla infantil brincaria no parquinho, naquela saída típica de casais com filhos e amigos que acompanham esses casais.

A sessão mal começou e os irmãos de sete e quatro anos comentavam o filme enérgicos. Com o tom mais alto que a dublagem e a espontaneidade própria da infância, aos pais só restava "shiii", "fale baixo", "você não está em casa", e outros apelos de discrição, mas impossível quando se tem crias. Exclamações, perguntas, risadas, sustos e os pimpolhos ficavam na torcida de que a pequena Dory, peixinha com perda de memória recente, desse certo nas suas aventuras e na vida. A cada expressão deles, eu sorria por dentro e por fora. Faz tempo que não ia a filme com crianças. É surpreendente ver aqueles olhinhos manifestando a sinceridade curiosa dos que sempre esperam o melhor da ficção e da realidade.

E eis que na metade da exibição, o mais novo suspira - "Esse filme é triste papai. Não quero mais ver.", enquanto se refugiava na segurança paterna. Fiquei emocionada com aquela sensibilidade que torce por finais felizes, por reencontros, por uma vida com a simplicidade e com a alegria de criança. E nisso, acabo recordando de cenas opostas, de pessoas que repetem corajosas em alto som - "Eu sempre espero pelo pior, porque se vier já estou preparada.". Ou mesmo de quem, precavido, enfatiza - "Odeio surpresas.". Talvez as experiências traumáticas tenham convertido tais criaturas em céticas, cautelosas, nas que esperam pouco da vida, e torcem que pelo menos se nada der errado isso já será o bastante.

Confesso que em alguns trechos também achei a história do filme um pouco exaustiva, como se Dory não fosse ter êxito. Isso me desgastou, assim quanto ao rapazinho espectador. Algo semelhante ao que ocorre na vida, quando estamos no círculo vicioso conhecido como "dar murro em ponta de faca", quando parece que estamos longe de acertar. Porém, diante daquela muralha de incertezas, das situações consideradas "sem saída", os Nemos questionavam intrigados - "O que a Dory faria neste caso?!".

Estar preso em constante esforço, em repetidas ações frustradas, pode nos levar a crer que não há um final feliz esperando por nós, ou que não exista um caminho alternativo para o sucesso. Nessas horas, nossa energia pode ir minando, ao passo que também vai enfraquecendo a fé em nós mesmos. E é justamente quando cabe a reflexão dos Nemos - "O que a Dory faria neste caso?!".

Que atitudes inesperadas eu poderia tomar, mesmo quando todos, principalmente eu, acham tal escolha um absurdo?! Qual saída não seria esperada para o contexto? O que seria louco, até mesmo para meus padrões, fazer? O que eu não estou vendo aqui? Dessas inversões de lógica e de pensamento, muitas vezes, damos chance ao cubo de revelar uma nova perspectiva, uma outra janela para nossos lamentos tão batidos.

Dory, com o que sabia fazer de melhor - esquecer - deu chance à vida de mostrar que os caminhos seguem no fluxo do aprendizado. Mesmo esquecendo nossas habilidades, nossa confiança interior, algo genuíno brota dentro de nós quando agimos com a despretensão e a confiança da peixinha. E os resultados podem ser surpreendentes.

Para mim, foi uma lembrança de que todos somos aptos a encontrar nosso próprio destino, mesmo esquecendo nossos recursos, mesmo nos perdendo de vez em quando no meio da estrada. “Continue a nadar, continue a nadar!”, repetia Dory, confirmando que a vida pode trazer surpresas maravilhosas, em geral de onde menos esperamos.

Quanto ao filho dos meus amigos, viu o filme até o fim e ficou feliz por Dory, que encontrou o caminho de volta. Então, depois foi comer pastel e brincar com a irmã.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Néctar dos Deuses



Costumo dizer que o melhor cheiro do mundo é o do café no momento da feitura. É o néctar dos deuses, sem tirar nem por. Nessa hora, me vejo como um pequeno elemental seguindo a fumaça, uma longa e tortuosa linha sedutora, que leva direto à xícara ou ao copo de vidro de botequim.

Nada mais trivial, simples e sempre inédito do que um café com pão. A combinação que traz à tona o essencial, o bate papo desinteressado, a conversa importante jogada fora, ou mesmo aquela horinha das fofocas construtivas. Um aroma que é o aconchego da alma, aquele tapinha nas costas que diz - "vai dar tudo certo". O perfume que lembra a paradinha no meio da tarde, da estrada, da preocupação, dos afazeres, dos familiares.

Ah, "café com pão bolacha não!", diz a brincadeira popular. A bebida que une e torna aquele grupo tão único, pelo menos durante os dez goles com direito a ovo, queijo e manteiga. Faz o povo ser o que é, uma animação ensurdecedora, uma bagunça misturada de gritos, piadas e risos, onde ninguém se ouve e todos se entendem.

À mesa, pães rodeados de gente, a família se debruça sobre as velhas e novas histórias. Falam mal, falam bem, falam dos que já foram, dos que não vieram e se divertem com os presentes. Uns até brincam, “Rapaz, ainda bem que vim para me defender.”. Ao lado do cafezinho, os ânimos se apoiam e todo mundo fica inteligente. Aparecem os causos que cada um sabe contar tão bem. Tem até aquele tio que sempre derruba a bandeja de alumínio no chão, e quando a gente menos espera toma o maior susto.

Não tem frase mais carismática do que aquela – “Tô passando aí pra tomar um café!”. Seja na casa da tia para fazer o social (uma desculpa para comer o queijo da fazenda), seja com o irmão (para pedir um conselho), seja com aquele amigo querido (que a gente adora encontrar), não precisa de justificativa para um bom gole de café.

E não se engane! Você pode beber leite, tomar Coca-Cola, preferir suco, por gosto ou mesmo pra evitar uma gastrite, tal a minha que costuma se fazer presente após longos períodos de cafeína, mas ainda assim você estará incluído na roda do café. O círculo democrático, que sempre cabe mais um, e que tem o jeito simples de dizer “estamos reunidos para o que fazemos de melhor, prosear”.

Há quem diga que café é bobagem. Penso eu, um sacrilégio! O café encurta as distâncias nas longas viagens, aquece os diálogos importantes e outros nem tanto, além de ser aquele momento simpático que nos torna mais gente, mais humano. Os estudiosos declaram, “faz mal”, depois revisam, “faz bem”. Certo mesmo é que um bom café - coado, expresso, forte, chafé - faz muito bem para o coração.


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Poderia ter sido aqui


Não foi aqui que assaltaram, mas foi na casa em frente, a única que naquela viela de pescadores estava escrito "Aluga-se por temporada."

Os hóspedes passaram o dia ouvindo som nas alturas, fazendo churrasco, bebendo e conversando, como é típico nas casas de praia. E passaram o dia sendo observados pela dupla que, às duas horas da madrugada de sábado, invadiu o recinto com armas à mão.

Não ouvi nada, mas soube depois pelas fofocas que a tentativa foi frustrada quando parte das vítimas correu e tocou a buzina dos carros, acordando quem tinha o sono mais leve nas redondezas.

Aquelas cigarras se divertiam sem considerar que eram observadas. Eu me pergunto o quanto não somos espreitados no nosso dia a dia, o quanto seres estranhos nos veem. É surpreendente, por exemplo, o que os vizinhos sabem da gente, o que os transeuntes captam sem que nos demos conta de sua existência. Na vida normal, sem veraneio, há dias em que sigo absorta pelo caminho, às vezes fico alerta, mas sei que ainda assim minha visão de lince não pode dar conta de tudo, não alcança quem estiver à espera afiado.

Na infância, fui criada numa rua pouco movimentada, uma das primeiras casas construídas na região, que à época era demarcada por cerca e um areal. Já vivi no tempo em que o lar completava cinquenta anos de construído. Cresci com minha Vó dizendo “não dê cabimento”, “não puxe conversa”, “entra logo”. E assim, era normal não interagir com a vizinhança, que mesmo sem diálogos sabia da nossa vida.

Todo esse cuidado não impediu que alguns impertinentes pulassem o muro lá de casa e bisbilhotassem nossa intimidade pelas venezianas, pelas inúmeras frestas da janela de madeira. Que uma desavisada empurrasse o portão e minha Vó, tão assustada quanto a desconhecida, a espantasse com um revólver, enquanto eu menina tremia para impedir um mal maior. Ou que tentassem roubar o carro no jardim e quase fossem alvejados pelo mesmo revólver da minha idosa Vó. Era Carnaval e eu não estava lá. Apenas minha Vó, a proteger meu Avô preso a um AVC, mas que foi corajosa o suficiente para mirar entre o muro e a parede da esquina. Ficou conhecida como a mulher que deu um tiro na rua.


Naquela noite de sábado, no entanto, na casa de praia, eu me preocupava com as horas que não passavam. Sentindo um aperto no peito, não imaginava que se tratava do rebuliço na casa com vista para o mar, a casa de aluguel. Foi de frente e eu não vi. Só tentava atravessar a madrugada, que tem parecido gigante e indomável nestes tempos de insônia.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Por um quase


Quinze minutos salvaram a vida do piloto de avião Leonardo, que naquela noite de terça-feira chegou atrasado ao trabalho na Turquia. O voo do brasileiro deveria decolar às 0h05 e segundo o protocolo da companhia, o piloto deveria estar presente no aeroporto duas horas antes da partida. Em Istambul, o terminal do aeroporto Ataturk foi alvo de atentado terrorista, às 22h de 28 de junho de 2016. Mais de 40 pessoas morreram e foram mais de 230 feridos. Para Leonardo foi por um quase.

Dedos de prosa a mais com um amigo ao telefone garantiram a integridade do brasileiro, que hoje deve conceder o título de anjo da guarda ao amigo. Passados o susto e o pesar, imagino se Leonardo viu a vida passar em flashback, se pensou em como o mundo e sua família ficariam sem ele. Se projetou quem encontraria “do outro lado”, e se revisou todas essas coisas que dizem que a gente faz quando a vida está escorrendo por um final, por um quase. "Ah, eu quase morri!". "Eu quase cheguei na hora!". "Eu quase disse que a amava tanto...". “Eu quase peguei aquele caminho...”, poderia divagar o piloto.

Às vezes, quando saio de casa, ou pelo menos tento e volto inúmeras vezes por ter esquecido algo, lembro de Paulo Coelho e conto até dez. Imagino os possíveis livramentos que posso ter recebido no dia pelo celular que deixei em cima da cama, pelo carregador que ficou plugado na tomada, pelo pente que não voltei para por o cabelo molhado em ordem.

Naquela terça-feira comum, o piloto brasileiro flertou a morte de perto. Será que Leonardo irá dizer mais eu te amos? Será que vai rir mais de si mesmo? Será que irá listar as quinze coisas que gostaria de realizar antes de morrer?

Inspirada no caso do piloto, comecei a fazer minha lista de desejos também. Sim, por um quase eu também poderia não estar mais aqui. Por um quase, eu poderia ter morrido há uns meses, quando entrei na cirurgia para retirada de um tumor cerebral.

Percebo que os itens da wish list não surgiram tão facilmente, como eu supunha. Fiquei um final de semana a refletir, a desejar, como aquele sonho que quase vamos esquecendo, aquela atitude mais arriscada que quase tomamos, mas pelo medo da censura, principalmente a nossa própria, deixamos para um dia, um depois.

Após uns sorrisos internos, fiquei que nem criança trazendo o impossível para junto de mim. Listei meus top 15, com a inocência dos que alcançam o céu com três pulos. É como se o mundo parasse para eu subir e me desse o carimbo do “você pode”, “você merece”,  “você realiza”.

Vamos lá:

  1. Ter um filho... estou em negociação há alguns anos com a endometriose.
  2. Ser uma escritora publicada e lida... sinto borboletas no estômago.
  3. Plantar uma árvore... não, brincadeirinha, quero mesmo é fazer o caminho de Santiago de Compostela.
  4. Conhecer a Índia... minha alma viaja para lá toda semana.
  5. Conhecer o Peru e visitar Machu Pichu... Tenho certeza que meus ancestrais estiveram lá!
  6. Ver um campo de tulipas na Holanda... Ahh imagino a textura, as cores e o cheiro!
  7. Realizar uma exposição de fotos minhas... Sebastião Salgado é minha inspiração, consegue olhar a alma humana e as paisagens com uma sensibilidade incrível.
  8. Conhecer vários países da Europa numa viagem incrível e descolada... imagino uma aventura a dois, mochilas nas costas e a coragem no bolso.
  9. Percorrer o litoral brasileiro de carro... uma barraca e colchonetes no porta-malas. Risos, música e...
  10. Ver um show ao vivo do Tony Mouzayek, meu cantor de música árabe que amo! Os derbakes já fazem meu coração saltar! Ouço os gritinhos e sou capturada pela dança do ventre!
  11. Conhecer Fernando de Noronha... vou encher o peito com aquela beleza.
  12. Aprender dança de salão e tango... quem sabe participo até de uma competição amadora. A dança traz a alma para o presente e leva o coração para outros tempos.
  13. Concluir a formação em Jornalismo... Tá chegando, sonho de criança, vou segurar aquele canudo como a Scarlett O’Hara em “E o Vento Levou”.

Me dou conta que ainda tem espaço para 2 desejos. Que maravilha! Posso pedir mais! É como diz minha sábia amiga, "o melhor investimento que podemos fazer neste momento é em nós mesmos".


segunda-feira, 4 de julho de 2016

Ela me bagunça



"Chega uma hora em que a única opção possível é viver", diz minha amiga com sua sabedoria peculiar em recentes devaneios. Ela é dessas que vêm e bagunça meu mundo, com suas frases de efeito. Sabe aquelas pessoas que mudam nossa perspectiva com uma boa conversa?! Assim é essa criatura, que mexe na minha vida mostrando que o impossível é apenas um ponto de vista.

"Parece que você esta flertando com a morte!", solta ela em diálogos simples enquanto caminhamos. Eu brinco que ela tem voz de comando sobre mim. E assim já me trouxe de volta quando eu queria fugir e fazer a vida no Norte do país, após uma dolorosa separação. "Sua vida é aqui! Você precisa voltar!", ordenava com a preocupação própria dos que amam e se importam. Em um dos últimos episódios, me chutou para o gol como aquele último empurrão antes de um abismo, em que a pessoa pula para salvar a pele.  "A bolsa ou a vida?!", me questionou incisiva. E foi com essa mãozinha que resolvi ir para outro estado me operar da cabeça.

Projetando sobre como seria se eu tivesse tomado outra decisão, agora eu poderia estar sem falar, sem comer, sem andar ou até não estar mais por aqui ouvindo as palavras de revestrés dessa minha irmã. Nas nossas prosas, costumamos refletir sobre como o indivíduo toma um rumo totalmente diferente com apenas uma decisão. "À esquerda ou à direita?", perguntamos a nós mesmos diante de impasses. E lá se vai o destino seguindo por um fluxo radicalmente diverso, porque o indivíduo tomou como curso à esquerda.

Quem subverte assim a lógica dos fatos como essa camarada, só pode ser muito inteligente! Quando todos estão indo numa direção, vem a amiga-Nemo e mostra aquele pontinho piscando que ninguém tinha notado, mas que faz uma grande diferença. A questão toda é que ela consegue resgatar o que está no meu íntimo. Aí quando joga as impressões no vento, vem aquela nítida sensação de que o outro caminho (agora o escolhido) é o que faz totalmente sentido. Então, com a confiança no fluxo (e na amiga), eu vou e mudo a opção.


Alguns a chamam de doida, esse era inclusive o apelido carinhoso dado por minha amada Vó para este ser particular. "Cadê a doida, minha filha?", lembrava a Vó quando queria um pouco mais de risos na própria vida. E nessa loucura, com a intensidade e a coragem somente dos imortais, ela diz que quer morrer com o caixão cheio de dívidas penduradas. "Afinal, são só papéis, enquanto a vida" - define ela - "essa passa rápido demais".