segunda-feira, 24 de abril de 2017

Não existem vidas comuns

“A grande pergunta que move minha vida é perceber como cada um inventa uma vida. Não existem vidas comuns, nossos olhos é que são domesticados.”. Com a fala mansa, pausada, reflexiva, Eliane Brum foi habitando todos os presentes no auditório da XII Bienal Internacional do Livro do Ceará. Uma palestra despretensiosa de segunda-feira sobre como “toda pessoa constrói uma versão da história a ser contada”. Ouvi-la aguçou os sentidos e abriu a alma.

Jornalista, escritora premiada e uma profissional de sensibilidade peculiar, Eliane Brum foi ainda mais surpreendente ao vivo. Enquanto discorria sobre sua vida e profissão, tinha uma fala doce, frágil, que emocionava a plateia. Às vezes parecia que aquela mulher de vestes pretas ia quebrar, se partir em histórias miúdas com vários protagonistas. Mas Eliane era firme e seu relato preenchia a sala de atenção e tensão, como aquelas vozes inebriantes que às vezes colocamos para ouvir antes de dormir.

Parecia haver floquinhos voando no ar, pude ver, enquanto todos prendiam a respiração para não perder um momento sequer, diante de um silêncio perturbador, diante da vida comum, “a vida que ninguém vê”. O público se repartia por dentro para alcançar aquela imensidão de relato.

Também impactado, o jornalista, escritor e um dos curadores da Bienal, Lira Neto, mediava uma palestra que pareceu voar. Duas horas com ponteiros de vinte minutos. A vastidão de Eliane extrapolava. “Eliane, você sabe que está nos emocionando, não é?”, perguntava Lira.

A escutadeira curiosa, como ela mesma se definiu, se disse habitada pelas diversas vozes das pessoas que se abrem para contar suas histórias, a cada vez que busca descobrir qual a delicadeza que torna a vida possível, mesmo com tanta violência ao redor.

“As palavras têm um espaço vital na minha vida. Escrevo para não matar, escrevo para não morrer.”, contou a autora explicando que não escreve para apaziguar ou encontrar respostas, mas para desacomodar. E o primeiro movimento passa por se desacomodar, despir-se de si, desabitar-se para ser habitado pelo outro. Ir o mais desabitado para vestir esse outro jeito de ser e estar no mundo, e só depois empreender o caminho de volta. Um processo que se faz essencialmente pela escuta, destacou ela.

Um caminho perigoso, arriscado, esse tal encontro com o outro. Não há garantias do que vamos descobrir do lado de lá. Enquanto todos buscam certezas, Eliane fala em incômodo, em dúvidas. É perturbador.

A escutadeira da vida que ninguém vê nos chamava para o olhar da delicadeza. Falou de morte, de tempo, do vazio, de cicatrizes e dos Brasis que ainda esperam por ser contados. Revelou sobre impotências, e sobre os momentos de estanque no seu processo de escrita, período em que procurava conexão entre os fatos observados e o que fazia sentido ser narrado. “Escrever é o possível, não é pouco nem é muito, é o possível.”

Suas palavras me chegam, me alcançam, me embalam e acordam. Tenho tentado “desdomesticar” os olhos, os sentidos, e me abrir para as histórias das vidas invisíveis, que nunca são comuns. Desconstruir é necessário, é trabalhoso, mas “não tem nada mais brutal do que estar à margem da narrativa, ser invisível.”, nos ensinou a escritora, que entra gentilmente no universo do outro enquanto pede para as pessoas mostrarem o próprio mundo. “Me conta...”, é seu ponto de partida.

Eliane é contundente e de um falar poético. Suas frases se encaixam com um lirismo que nos faz imaginar quanta vivência cabe ali. Ela viu gente, abandono, dor, vazio, viu “desacontecimentos”, como tantos de nós. Porém, sua narrativa é resistência em uma época de imediatismo, julgamentos sumários e ódios virtuais. Ela resgata o olhar do observador, que dá tempo para a vida se revelar, sem pressupor as respostas, sem prescindir da atenção.

Eliane nos lembra de que não há vida banal, há vida, há desassossego. Testemunhas, personagens, narradores, somos partes do mesmo mosaico que se forma enquanto tentamos justificar a existência, diante de dias caóticos e pulsantes.

Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.




quarta-feira, 5 de abril de 2017

Destemperados


Manhã de uma terça-feira. Três horas de espera na fila do banco e as reclamações começam.

- Estou aqui desde dez horas, isso é um absurdo! - protesta um.

- É assim que vocês tratam os correntistas de vocês?! – questiona indignado um homem alto.

- Senhor, falta muito para minha senha? Estou passando mal de fome. Cheguei muito cedo e nada de eu ser chamada! - desabafa uma senhora junto ao gerente.

- Que prioridade é essa que a gente fica esperando sem fim?! – reivindica uma idosa.

E o coro vai aumentando, até que um senhor levanta e brada a plenos pulmões:

- Isso é um desrespeito!! Vocês saem para comer, mas a gente fica aqui feito besta! Duvido que o senhor gerente fique sem almoçar! Mas a gente não vale nada!

Os demais, que também esperam, aplaudem, balbuciam as próprias queixas e, após segundos, vão se calando. O gerente responde:

- Senhor, somos só nós três atendendo. Não tem mais funcionários e dez mil se aposentaram. É o jeito esperar a sua vez.

Minutos depois, o gerente sussurra para uma funcionária:

- Viu aquele senhor gritando? Como sempre, é um devedor. Depois pede ao fulano para olhar o caso dele.

Ao meu lado, uma mulher cisma com um suposto casal enquanto o homem, que carrega uma criança no colo, vai pedir informação ao funcionário:

– Olha! Ele traz a criança para ter prioridade na fila. Aquela ali deve ser a mulher dele!

Uma desconhecida participa da conversa no ar:

- Tenho certeza que ela podia ter ficado em casa! Pra que saíram os dois sem necessidade?! São muito é sabido.

Uma manhã e tarde olhando para senhas piscando no visor e a sensação de total impotência e desperdício de tempo. Assim foi minha última ida ao banco.

Desde pequena, não sou afeita nem a instituições bancárias tampouco a dirigir no centro da cidade. Quando tenho um compromisso assim, sinto que aquele será um dia difícil de atravessar. Meu pai, tempos atrás, confessou ter o mesmo sintoma. Sendo genética ou não, o fato é que sempre tive pesadelos nas idas ao banco.

Primeiro fico em constante alerta por medo de assalto. Olho o movimento dos guardas, a porta giratória barrando alguém. Imagine, ser refém naquela manhã chuvosa, quando você ainda tem muito o que fazer?! Se der azar e os clientes tiverem que tirar a roupa?! Meu Deus, passar a temível vergonha das peças íntimas descombinadas. Terror para um imaginário fértil.

Depois, tenho a impressão de que as idas ao banco são pura perda de tempo, quando não se consegue resolver as pendências pela internet, telefone ou caixas automáticos. No meu caso, o cadastro voltou aos dados antigos, por inexplicável vontade do sistema, emperrando operações futuras. O gerente, não resolvendo o problema, pede que eu ligue para o autoatendimento. Então, por que me mandaram à agência?! “É o sistema, não posso fazer nada.”, explica o gerente.

Além disso, não raro, as informações entre agências do mesmo banco também diferem e você se pergunta onde está o treinamento? Mas isso é bobagem, seu tempo é barato e a gasolina também. Numa hipótese mais animadora, você ainda ganha o direito a contracenar no espetáculo de teatro amador, desses de uma terça-feira comum.

Pause. Você se imagina protagonista da cena, batendo o telefone do gerente com toda a força, joga uma pilha de papéis no chão, sobe na cadeira e convoca os demais para um motim. Quadro típico de “Um Dia de Fúria”.

Play! Você se dá conta do quanto deve ser estressante trabalhar em banco e ter que ouvir todo dia aquela ladainha de clientes reclamando de filas com mais de três horas, e ainda ter o atendimento sempre interrompido. "Pode me dar só uma informação, por favor?!"

Pause. Você olha ao redor e nada naquele ambiente parece estar feliz, nem clientes, nem funcionários, nem o guarda, nem a moça que presta informação na entrada do banco e conversa tranquilamente com uma segunda funcionária, sem se importar com as pessoas na filando esperando a triagem inicial das senhas.

Play. Você sai do banco sem resolver sua questão e pensa em como o dia foi arrastado. Torce para que amanhã não tenha que voltar à agência e reviver as cenas de uma novela que não vale a pena ver de novo.

Talvez o rapaz que vende milho cozido na saída do banco tenha tido mais sorte e fature algum com a espera alheia, ou o flanelinha receba uns trocados, se tiver paciência em aguardar sua volta após um expediente de cinco horas. Difícil deve ser para a loja de flores ao lado, vender bombons, pétalas e romantismo para os que saem destemperados das filas de banco.


Texto escrito para minha coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.