“A grande pergunta que move minha vida
é perceber como cada um inventa uma vida. Não existem vidas comuns, nossos
olhos é que são domesticados.”. Com a fala mansa, pausada, reflexiva, Eliane
Brum foi habitando todos os presentes no auditório da XII Bienal Internacional do
Livro do Ceará. Uma palestra despretensiosa de segunda-feira sobre como “toda
pessoa constrói uma versão da história a ser contada”. Ouvi-la aguçou os
sentidos e abriu a alma.
Jornalista, escritora premiada e uma profissional
de sensibilidade peculiar, Eliane Brum foi ainda mais surpreendente ao vivo.
Enquanto discorria sobre sua vida e profissão, tinha uma fala doce, frágil, que
emocionava a plateia. Às vezes parecia que aquela mulher de vestes pretas ia
quebrar, se partir em histórias miúdas com vários protagonistas. Mas Eliane era
firme e seu relato preenchia a sala de atenção e tensão, como aquelas vozes
inebriantes que às vezes colocamos para ouvir antes de dormir.
Parecia haver floquinhos voando no ar,
pude ver, enquanto todos prendiam a respiração para não perder um momento
sequer, diante de um silêncio perturbador, diante da vida comum, “a vida que
ninguém vê”. O público se repartia por dentro para alcançar aquela imensidão de
relato.
Também impactado, o jornalista, escritor
e um dos curadores da Bienal, Lira Neto, mediava uma palestra que pareceu voar.
Duas horas com ponteiros de vinte minutos. A vastidão de Eliane extrapolava. “Eliane,
você sabe que está nos emocionando, não é?”, perguntava Lira.
A escutadeira curiosa, como ela mesma
se definiu, se disse habitada pelas diversas vozes das pessoas que se abrem
para contar suas histórias, a cada vez que busca descobrir qual a delicadeza que
torna a vida possível, mesmo com tanta violência ao redor.
“As palavras têm um espaço vital na
minha vida. Escrevo para não matar, escrevo para não morrer.”, contou a
autora explicando que não escreve para apaziguar ou encontrar respostas, mas para
desacomodar. E o primeiro movimento passa por se desacomodar, despir-se de si,
desabitar-se para ser habitado pelo outro. Ir o mais desabitado para vestir
esse outro jeito de ser e estar no mundo, e só depois empreender o caminho de
volta. Um processo que se faz essencialmente pela escuta, destacou ela.
Um caminho perigoso, arriscado, esse
tal encontro com o outro. Não há garantias do que vamos descobrir do lado de
lá. Enquanto todos buscam certezas, Eliane fala em incômodo, em dúvidas. É
perturbador.
A escutadeira da vida que ninguém vê
nos chamava para o olhar da delicadeza. Falou de morte, de tempo, do vazio, de
cicatrizes e dos Brasis que ainda esperam por ser contados. Revelou sobre
impotências, e sobre os momentos de estanque no seu processo de escrita, período
em que procurava conexão entre os fatos observados e o que fazia sentido ser
narrado. “Escrever é o possível, não é pouco nem é muito, é o possível.”
Suas palavras me chegam, me alcançam,
me embalam e acordam. Tenho tentado “desdomesticar” os olhos, os sentidos, e me
abrir para as histórias das vidas invisíveis, que nunca são comuns.
Desconstruir é necessário, é trabalhoso, mas “não tem nada mais brutal do que
estar à margem da narrativa, ser invisível.”, nos ensinou a escritora, que entra
gentilmente no universo do outro enquanto pede para as pessoas mostrarem o próprio
mundo. “Me conta...”, é seu ponto de partida.
Eliane é contundente e de um falar
poético. Suas frases se encaixam com um lirismo que nos faz imaginar quanta
vivência cabe ali. Ela viu gente, abandono, dor, vazio, viu “desacontecimentos”,
como tantos de nós. Porém, sua narrativa é resistência em uma época de
imediatismo, julgamentos sumários e ódios virtuais. Ela resgata o olhar do
observador, que dá tempo para a vida se revelar, sem pressupor as respostas,
sem prescindir da atenção.
Eliane nos lembra de que não há vida
banal, há vida, há desassossego. Testemunhas, personagens, narradores, somos
partes do mesmo mosaico que se forma enquanto tentamos justificar a existência,
diante de dias caóticos e pulsantes.
Texto originalmente escrito para minha coluna quinzenal no Blog Repórter Entre Linhas.