segunda-feira, 1 de junho de 2009

A Casa

Com 52 anos de idade, a Casa hoje é uma jovem senhora que passou por quatro gerações e segue numa quinta, porém de desconhecidos. É que a Casa está alugada.

Desfazer- me da Casa é semelhante a dizer adeus a um parente muito amado. Eu não imaginava o quanto até estar aqui em Minas e sabê-la habitada por Outros que não entendem seu valor e sua experiência de vida. O fato é que chegou o momento de dizer adeus.

Hoje, um canto agudo de pássaro que dizia “bem-te-vi” lembrou minha Casa. Eu costumava acordar com os passarinhos. Adorava isso. Sentia-me no campo em plena cidade. Era um privilégio. Os dois pés de acerola no jardim acolhiam vários passarinhos. Quando o vento soprava, todos voavam de uma vez. Era um movimento repetido e único. Merecia uma poesia e uma foto. A Tardinha também trazia esses sons bucólicos. E por mais que houvesse tédio ou tristeza, a essa hora reinava um silêncio de prazer e esperança. Era um momento de fé e desapego. Tenho saudade.

A Casa tinha dessas coisas agradáveis. No quintal, onde um dia viveram mangueiras, coqueiros, goiabeiras, bananeiras, pés de ata, limão e mamão, agora só há a cacimba e grama alta. Tudo cabia ali. Do passado restaram apenas os dois pés de romã e a planta que dá a “flor de laranjeira”. Recordo que no final do dia, o cheiro da flor costumava despertar e caminhar por uma fumaça invisível até me encontrar, no cômodo que fosse, da minha amada Casa. Eu corria ao encontro, juntava uns raminhos e colocava num copo daqueles de requeijão o buquê fresquinho para perfumar meu quarto. Era um aroma virgem e calmante.

Na minha infância, goiaba dava aos montes. Fazia lama e chamava mosca. As manguitas (pequenas mangas docinhas) caíam no quintal num som surdo, meio oco. Tudo acontecia escondido, mas havia movimento na Casa. Lembro do doce de goiaba da minha Vó. Bem doce, era verdade. Nunca gostei muito. Preferia o de mamão e a própria goiaba em fruta bem verdinha. Na mordida, chegava a doer o maxilar. Sabe aquela dor agulhada bem fininha? Pois é, eu gostava.

Havia um lado da Casa em que raramente andávamos. Uma varanda lateral, de piso vermelho em cerâmicas pequenininhas. Não sei por que a porta para esse terraço vivia fechada. Isso impedia a Casa de respirar. Em tempos não muito freqüentes, a Vó abria todas as portas e janelas. Era nas faxinas. O vento dava e trazia luz, arejando os cômodos. A Casa era escura.

Pela Casa passaram empregadas, carros, cachorros e mortes. Minha bisavó e Avô morreram lá. Meu tio quase também. Saiu na ambulância numa noite de domingo, meio sem vida. Tentou se matar. Conseguiu. No quintal jazia ainda a Bec, nossa pequinês de quando eu era bem criancinha. Foi também numa noite de domingo. Demos leite, ela estava quietinha e depois morreu. Eu não tinha medo da Casa. Só às vezes de noite. Uma vez, senti a cama vibrar. Tinha adormecido, jogada com mais duas amigas. Não ligamos. Estávamos exaustas em juventude. O tremor não nos derrubou.

Agora a Casa está lá, fechada para mim, abrigando outras histórias. As lembranças eu trouxe. Tiveram as quedas da minha Vó, as brigas com minha mãe, a bebedeira do meu Avô, as loucuras de livro do meu Pai, as farras com os amigos, os estudos de colégio, as reuniões tão animadas e gostosas. A Casa estava aberta para todos nós, irmãos-amigos. Ela acolhia, ouvia, vigiava. Revelou até gravidez de amiga.

A Casa chegou a ser conhecida como “A Casa do Pinheirão”. Uma árvore enorme, alta de verde seco, empinada para o céu, ficava na entrada, quase a desabar sobre os quartos. Eu vivia pedindo por medo que a tirassem dali. Um dia, cheguei da escola, a rua interditada e os bombeiros cortando o Pinheirão. Fiquei com dó e culpada. Deu um nó de espanto. Poxa, não precisava cortar tudo, apenas podar! Ficou um vazio. Não era mais a “Casa do Pinheirão”.

Tinham também as roseiras. Minha Vó adorava roseiras. Amarelas, brancas e róseas. As vermelhas eram mais raras. Uma noite, eu criança de cinco anos no colo do meu Avô bêbado, caí junto com ele no meio do roseiral. Fiquei toda ralada. Lembro de mim só de calcinha, em cima da mesa vermelha das refeições, toda arranhada. Minha Vó passando mertiolate, eu chorando com o ardor. Não me lembro de beijo nem carinho, só o vermelho mertiolate. Meu Avô ficou lá, estendido na terra das roseiras.

A Casa era assim, cheia de notícias. Hoje, mal sei dela pela imobiliária. Os vizinhos dizem boatos maledicentes. Antes devir para Minas, fui lá me despedir. Seria o meu ritual, quase igual ao de quando me mudei de lá para uma outra casa, bem menor e alugada. Não consegui entrar. O inquilino não apareceu.

Desde então, guardo a Casa em memória. Escrevendo esse texto eu chorei. É muita vida que só eu sei. Aqui em Minas, despeço-me dela. Sinto que é chegada a hora. Está sendo um processo lento e necessário. Seu futuro, ainda é incerto. Nesse movimento, porém, tenho descoberto que minha Casa sou eu. E não importa aonde eu vá, a Casa sempre estará em mim.

4 comentários:

  1. Cris,
    esse texto está fenomenal. Amei principalmente a história da minha gravidez lá revelada ... kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    Quanto à Casa, vc acredita q uma noite dessas estava lendo seu Semanário e conversando com o Mario e ele me perguntou sobre Ela.
    Respondi q achava que vc tinha a alugado e ele falou: - Aquela Casa é o máximo!!!! Show mesmo!!!!
    Quero dizer q amo aquela Casa tanto qto vc. Ela me traz tantas recordações maravilhosas: trabalhos da Unifor, estudos para provas, acolhimento nos momentos difíceis e, principalmente, sua avó, que é a cara dela.
    Estou com saudades.

    Bjs.

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  2. Como é mágico você falar da Casa. Senti-me em todas as casas que morei um dia e dos sentimentos que passei. Me vi ali na Casa, escutando os pássaros, vendo o chão coberto de goiabeira...Assim volto pra casa, construo uma palhoça para me sentir mais e mais perto de casa, de meu interior, do lugar que me sinto mais e mais a vontade e relaxado...
    Busque sua casa, seu aconchego, seu interior..."O que está dentro é o que está fora"

    Abraço carinhoso...saudades

    Daya

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  3. Que lindo........
    Sem comentários adicionais....rs
    Sinto-me honrada por ter habitado esse 'templo' também! Quase que uma segunda casa pra mim! Obg!!!

    Te amo!
    Alu

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  4. Cris,
    Nos momentos mais difíceis é que as respostas começam a aparecer.
    Calma!Não tomei nenhuma smirnoff...
    Apenas olhe pra sua história,pras suas raízes,pra sua "casa"...
    Tá tudo aí!Sua força,sua vontade,seus sonhos,seus amigos,sua vida!Talvez,até o que esteja por hora faltando...Ou demorando pra ser encontrado!
    O alicerce tá lá!Firme,se bem que escondido.Mas,LÁ!!!

    Bjos e ótima semana!
    Sorte e sabedoria na caminhada!
    Hania

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