sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Voz além do alcance


Nesse tempo de fala rouca, ser ouvida tem sido um desafio para mim. Devido à cirurgia na cabeça, que afetou consideravelmente minha voz, tenho lutado para expressar minhas ideias e ocupar espaços que antes eram automáticos. A limitação atual me faz refletir sobre o quanto estamos de fato disponíveis para ouvir o outro. Tenho vivido histórias interessantes.

Episódio recorrente tem sido desligarem a ligação na minha cara. Eu digo alô e do outro lado da linha pedem que eu fale com mais força, eu me esforço e do lado de lá reclamam: “Senhora, a ligação está baixa, não consigo ouvir”. Alguns tentam mais, outros menos. Eu ligo novamente, desligam. Uma vez pedi ajuda aos universitários, enquanto minhas palavras entalavam no meio da garganta. Tem sido um tempo de persistência e ponderação.

Até me considero uma boa ouvinte, e sem voz, é o que mais tenho praticado. Nem sempre há espaço para interagir no mesmo dinamismo de antes. Eu que era expert em piadinhas e sacadas cults, agora aceno com a cabeça, esboço um sorrisinho e me faço de entendida. Falas mais enérgicas se sobrepõem ao meu fôlego, ambientes maiores somem com a réstia das sílabas e eu escuto ruídos por dentro. É tempo de observar.

Outro dia me disseram: “Fiquei rouca igual a você. Foi horrível, ninguém me escutava, imagino que seja muito ruim mesmo ficar sem voz”. Pois é, bem vindo ao meu novo mundo peculiar, que não consegue cantar um refrão inteiro a plenos pulmões (em inglês é ainda mais cômico) e que se deu conta de que gritar socorro é quase impossível.

O simbolismo dessa castração (como diriam os analistas) me trouxe apreço pela fala. Quando no passado eu evitava me expor, falar em público (embora ainda difícil), agora tudo que almejo é ser ouvida, falar bem alto, mesmo que para uma plateia vazia. Gritar uns palavrões para liberar a tensão.

No percalço de projetar a voz, percebo que exige do outro paciência, atenção e de fato vontade em conversar com uma criatura fanha e sem ar. Às vezes, para esse outro creio ser mais fácil disparar o blá, blá, blá a perder tempo com uma voz soprosa e infantil. Na vida há um fazer urgente.

Brinco que meu tom está romântico, escuto resignada receitinhas para curar a “inflamação na garganta” – casca de romã, mel com própolis, água com sal... “você vai ver que no outro dia recupera rápido” – No fundo, é mais fácil afirmar com a cabeça do que explicar minha condição. “Está certo minha senhora, eu agradeço.”

Tem horas que bate o cansaço e o jeito é voltar para dentro, onde as perguntas preenchem parágrafos e minha voz continua a mesma. Eu ouço meus acordes como se nada tivesse ocorrido. É estranho. A fala que vem de dentro não mudou, só ficou mais barulhento do lado de fora. Ainda prezo o silêncio para organizar as ideias que pipocam. Calar tem seu valor.

Minha produção não diminuiu. Em alguns dias até faço mais do que deveria e vejo que o corpo pede calma, respeito, limite. Sabe quando a cabeça vai mais rápido e o esqueleto ficou passos atrás? É tempo de fazer menos, de dizer não.

Se a voz falha, há que se escutar o corpo e dar ouvidos à alma. Se do lado de fora nos ouvem menos, do lado de dentro ouçamos mais. O tempo pede silêncio, para escutar a voz além do alcance.


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